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quarta-feira, maio 10, 2006

Capítulo 10

Capítulo 10 - A diferença entre graça e predestinação.

19. Sobre o que afirmei antes: “O poder salvífico desta religião jamais faltou a alguém que dela fosse digno e, se a alguém faltou, é porque não foi digno”, se se discute e investiga a razão pela qual alguém é digno, não faltam os que dizem que é pela vontade humana. Nós, porém, dizemos que é pela graça ou predestinação divinas. Todavia entre a graça e a predestinação há apenas esta diferença: a predestinação é a preparação para a graça, enquanto a graça é a doação efetiva da predestinação.
Assim, o que diz o Apóstolo: “Não vem das obras, para que ninguém se encha de orgulho. Pois somos criaturas dele, criados em Cristo Jesus para as boas obras,” significa a graça. O que se lê em continuação: “Que Deus já antes tinha preparado para que nelas andássemos” (Ef 2,9-10), indica a predestinação, que não existe sem a presciência, ao passo que a presciência se pode dar sem a predestinação.
Pela predestinação, Deus previu o que havia de fazer, pelo que foi dito: “Fez as coisas do futuro (Is 45, seg. LXX).” Ele tem o poder de prever mesmo o que não faz, como são quaisquer pecados, ainda que haja pecados que o são como castigo de pecados, como está escrito: Deus os entregou à sua mente incapaz de julgar, para fazerem o que não presta (Rm 1,28); nisto não há pecado de Deus, mas justiça de Deus. Portanto, a predestinação de Deus, que é prática do bem, é, como disse, preparação para a graça, mas a graça é efeito da própria predestinação.
Por isso, quando Deus prometeu a Abraão em sua descendência a fé de muitos povos, dizendo: “E tu serás pai de muitas gentes” (Gn 17,4-5), o que levou o Apóstolo a dizer: “A herança vem da fé, para que seja gratuita e para que a promessa fique garantida a toda a descendência,” não fez a promessa em virtude do poder de nossa vontade, mas devido à sua predestinação.
Prometeu, pois, não o que os homens, mas o que ele havia de realizar. Porque, embora os homens façam o bem relativo ao culto de Deus, ele faz com que eles façam o que ordenou, e não depende deles que ele faça o que prometeu. Em caso contrário, para o cumprimento da promessa de Deus, dependeria do poder dos homens e não do de Deus, e o que pelo Senhor foi prometido, retribuiriam a Abraão. Não foi neste sentido que Abraão acreditou, mas acreditou, dando glória a Deus, convencido de que ele é capaz de cumprir o que prometeu (Rm 4,16-2 1). Não diz: “Predizer”, mas “Saber pela presciência”. Pois é capaz de também predizer e prever as ações alheias a si, mas diz: é capaz de cumprir, o que quer dizer: não obras estranhas a si, mas as próprias.
20. Porventura Deus prometeu a Abraão na sua descendência as boas obras dos gentios, prometendo, portanto, o que ele mesmo faz? Não lhe prometeu a fé dos gentios, que é obra dos homens, mas, para prometer o que ele faz, não teve presciência da fé que seria obra dos homens? Não é este o pensamento do Apóstolo, pois Deus prometeu a Abraão filhos que seguissem suas pegadas na fé; é o que diz com toda a clareza.
Mas se prometeu as obras dos gentios e não a fé, sem dúvida foi porque não existem boas obras a não ser pela fé, como está escrito: “O justo viverá da fé” (Hab 2,4), e: “Tudo o que não procede da boa fé é pecado” (Rm 14,23), e: “Sem a fé é impossível ser-lhe agradável” (Hb 11,6); contudo, o cumprimento do prometido por Deus depende do poder humano.
Isso porque, se o homem não faz sem a graça de Deus o que depende de seu poder, Deus não fará por seu dom, ou seja, se o homem não tiver fé por si mesmo, Deus não cumpre o que prometeu, a fim de que as obras da justiça sejam obras de Deus. Por isso, o fato de Deus cumprir suas promessas não depende de Deus, mas do homem.
Mas se a verdade e a piedade não impedem a fé, creiamos com Abraão que Deus é capaz de cumprir o que prometeu. Mas Deus prometeu a Abraão filhos, os quais não poderão sê-lo, se não tiverem fé. Portanto, Deus outorga também a fé.