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domingo, setembro 30, 2007

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domingo, maio 14, 2006

O Peregrino

Capítulo 1

COMEÇA O SONHO DO AUTOR - CRISTÃO, GUIADO POR EVANGELISTA, INICIA SUA PEREGRINAÇÃO.


Andando pelas regiões desertas deste mundo, achei-me em certo lugar onde havia uma caverna; ali deitei-me para dormir e, dormindo, tive um sonho. Vi um homem vestido de trapos (Is.64:6), de pé em determinado lugar, com o rosto voltado para o lado oposto da própria casa, um livro na mão e um grande fardo às costas (SI 38:4). Olhei e o vi abrir o livro e lê-lo; e lendo, chorava e tremia e já não se contendo, rebentou num choro sentido, dizendo: "Que devo fazer?" (Act.16:30-31).
Nessa angústia, portanto, voltou para casa e se conteve o máximo que pôde, para que sua mulher e seus filhos não lhe percebessem o desconsolo; mas não podia mais calar-se, pois seu tormento crescia. Assim, afinal revelou sua angústia à mulher e aos filhos; e começou a falar-lhes:
- Minha querida esposa e filhos – disse ele – tenho estado muito preocupado em virtude de um fardo que muito me pesa; além disso, tenho uma informação segura de que nossa cidade será queimada com fogo do céu, em cuja terrível destruição eu, você, minha esposa e vocês, filhinhos amados, seremos destruídos, a não ser que haja uma maneira (que não vejo) de escapar, pela qual nos libertemos.
A revelação deixou a mulher e os filhos aflitamente surpresos, não porque acreditassem que o que ele lhes dizia era verdade, mas porque achavam que alguma insensatez desvairada lhe confundia o pensamento. Aproximando-se a noite, portanto e esperando eles que o sono pudesse acalmá-lo, mais que depressa o fizeram dormir. Mas a noite foi para ele tão perturbadora quanto o dia; assim, em vez de dormir, passou-a entre suspiros e lágrimas.
Quando veio a manhã, quiseram saber como ele passara e lhes disse que piorava cada vez mais. Também voltou a falar-lhes, mas eles começaram a mostrar-se endurecidos. Então cogitaram curar-lhe a insensatez por meio de um comportamento rude: às vezes zombavam dele; às vezes o repreendiam; e às vezes simplesmente o ignoravam. Por isso ele passou a isolar-se em seu quarto para orar e lamentar por eles, e também para condoer-se da própria angústia. Caminhava solitário pêlos campos, às vezes lendo, às vezes orando. Assim passou o tempo durante alguns dias.
Ora, vi certa vez quando ele caminhava pêlos campos que (como costumava fazer) lia seu livro exibindo grande angústia e, lendo, rebentou em lágrimas, como já o fizera antes, clamando: "Que devo fazer para ser salvo?"
Vi também que ele olhava para um lado e para o outro, como se pretendesse correr, porém permanecia imóvel, pois, como percebi, não conseguia decidir que caminho tomar. Olhei então e vi um homem chamado Evangelista aproximar-se dele e perguntar-lhe:
- Por que você está chorando?
- Senhor, percebo, por este livro que tenho nas mãos, que estou condenado a morrer e, depois, ir a julgamento (Heb.9:27). Não quero que a primeira coisa aconteça comigo agora, nem tampouco estou pronto para a segunda.
Disse então o Evangelista:
- Por que não está disposto a morrer, se esta vida é afligida por tantos males?
- Porque temo que esse fardo que trago às costas me enterre mais fundo que a sepultura e que eu venha a cair na fogueira. E, senhor, se não estou disposto a ir cara a prisão, não estou disposto (tenho certeza) a enfrentar o juízo e depois a execução. Pensar nessas coisas me faz chorar.
- Se é assim que você se sente — disse o Evangelista, porque você fica aí parado?
- Porque não sei para onde ir.
Então ele lhe deu um livro, no qual estava escrito: "Fugi da ira vindoura" (Mat.3:7).
O homem leu e, olhando para o Evangelista, falou com muito cuidado:
- Para onde devo fugir?
Respondeu o Evangelista, apontando o dedo para um campo bem vasto:
- Vê lá longe aquela porta estreita? (Mat.7:13, 14).
-Não.
- Vê lá longe aquela luz radiante? (SI 119:105;2 Ped.l:19).
- Acho que sim.
- Pois fixe o olhar nessa luz e suba direto até lá. Ao chegar, você verá a porta. Bata e lhe dirão o que deve fazer.

sábado, maio 13, 2006

Capítulo 2

CRISTÃO CHEGA AO PÂNTANO DA DESCONFIANÇA.


O homem, então, começou a correr. Ora, nem havia ainda se distanciado da porta de casa, quando sua mulher e seus filhos, percebendo, começaram a gritar-lhe que voltasse. Mas o homem tapou os ouvidos com os dedos e continuou correndo, berrando: "Vida, vida, vida eterna". Assim não olhou para trás, mas corria para o centro da campina (Gen.19:17).
Os vizinhos também vieram vê-lo correr1 e enquanto corria, alguns escarneciam, outros ameaçavam, outros ainda gritavam-lhe que voltasse. Ora, entre esses, dois decidiram trazê-lo de volta à força. O nome de um deles era Obstinado e o outro se chamava Volúvel. Contudo, a essa altura, o homem já estava a boa distância deles, mas mesmo assim eles resolveram persegui-lo e o fizeram e em pouco tempo o alcançaram. Disse-lhes o homem:
- Vizinhos, por que vieram atrás de mim?
- Para convencê-lo a voltar connosco.
- Isso não é possível. Vocês moram na Cidade da Destruição (Is.19:18, ARC), local onde também eu nasci. Percebo isso e lhes digo que, morrendo ali, mais cedo ou mais tarde vocês afundarão além da sepultura, até um lugar que queima com fogo e enxofre. Alegrem-se, bons vizinhos e acompanhem-me.
- O quê?! - Disse Obstinado. - Deixar nossos amigos e nosso conforto para trás?!
- Isso mesmo – disse Cristão (pois era esse o seu nome) – porque tudo isso que vocês abandonarão não é digno de se comparar nem com um mínimo daquilo que busco desfrutar. Se vocês vierem comigo e o alcançarem, desfrutarão também assim como eu, pois lá para onde vou há bastante e de sobra. Venham e comprovem as minhas palavras.
obs. – Que coisas são essas que você procura e pelas quais abandona o mundo todo?
cris. – Busco uma "herança incorruptível, sem mácula, imarcescível", (1 Ped.1:4) e ela está guardada no céu, em segurança, para ser distribuída no tempo devido àqueles que a perseguirem com zelo. Leiam, se quiserem, no meu livro.
obs. - Dane-se o seu livro. Vai voltar connosco ou não?
cris. - Não, não vou, pois já pus a mão no arado (Lc.9:62).
obs. - Não adianta, meu vizinho Volúvel. Retornemos para casa sem ele. Há uma multidão desses tolos alucinados e quando se convencem de uma fantasia, ficam mais sábios aos seus próprios olhos do que sete homens que sabem expor a razão (Pv26:16).
vol. - Não o insulte. Se o que o bom Cristão diz é verdade, as coisas que ele procura são melhores que as nossas. Meu coração se inclina a acompanhar o meu vizinho.
obs. - O quê?! Há mais tolos então? Ouça-me e volte. Quem é que sabe aonde um homem tão mentalmente doente poderá levá-lo? Volte, volte, e seja sábio.
cris. - Acompanhe-me, vizinho Volúvel. Além do que já lhe falei, há muito mais glórias a alcançar. Se você não crê em mim, leia então este livro e pela verdade do que está expresso aqui, veja que tudo está confirmado pelo sangue do seu autor.
vol. - Ora, vizinho Obstinado, estou prestes a tomar uma decisão. Pretendo seguir com este bom homem e arriscar com ele a minha sorte. Mas, bom companheiro, você acaso sabe o caminho até esse lugar almejado?
Cris. - Sou guiado por um homem chamado Evangelista. Ele nos conduzirá até uma pequena porta que está adiante de nós. Lá receberemos instruções acerca do caminho.
vol. - Vamos então, bom vizinho, partamos agora. E partiram os dois.
obs. - Quanto a mim, vou voltar para casa. Não servirei de companhia para homens fantasiosos e perdidos.

Ora, vi então no meu sonho que, depois que Obstinado se foi, Cristão e Volúvel cruzaram a campina e assim iam conversando:
cris. - E então, vizinho Volúvel, como tem passado? Fico feliz por você ter se convencido a vir comigo. Se o próprio Obstinado sentisse o que senti diante dos poderes e terrores daquilo que ainda não se vê, ele não teria nos virado as costas assim tão levianamente.
VOL. - Como aqui não há ninguém além de nós, vizinho Cristão, diga-me que coisas são essas e como desfrutá-las no lugar aonde vamos.
cris. - Posso melhor concebê-las com a mente do que expressá-las com palavras. Mas como assim mesmo você deseja saber, vou lê-las no meu livro.
VOL. - E você cré que as palavras do seu livro são absolutamente verdadeiras?
cris. - Sim, certamente, pois foram escritas por aquele que não pude mentir Tt.1:2 .
vol. - Muito bem: que coisas são essas?
cris. - Receberemos uma vida eterna e viveremos, para sempre, num reino sem fim.
vol - Muito bem: e o que mais?
cris. - Há coroas de glória que nos serão dadas e vestes que nos farão brilhar como o sol no firmamento do céu.
vol. — Isso é excelente. E o que mais?
cris. — Não haverá mais choro nem pesar, pois aquele que é proprietário do lugar nos enxugará dos olhos toda lágrima (Ap.21:4).
vol. - E quem teremos ali por companhia?
cris. - Lá conviveremos com serafins e querubins, seres que de tão brilhantes ofuscarão nossos olhos. Lá você também encontrará milhares e dezenas de milhares que chegaram antes de nós; nenhum deles é agressivo, mas santo e amoroso; todos eles andam à vista de Deus e permanecem aceitos na sua presença para sempre. Resumindo, lá veremos os anciães com suas coroas de ouro. Lá veremos as santas virgens com suas harpas de ouro (Ap.4:4, 5:11, 14:1-5). Lá veremos homens que pelo mundo foram retalhados e queimados, devorados por animais e afogados nos mares, devido ao amor que tinham ao Senhor do lugar. Agora todos estão bem e vestidos de imortalidade.
vol. - Só ouvir isso já arrebata o coração de qualquer homem. Mas podemos desfrutar dessas coisas? Como poderemos consegui-las?
cris. - O Senhor, soberano daquela terra, registrou isso neste livro. A essência é seguinte: se verdadeiramente nos mostrarmos dispostos a tê-las, ele as concederá gratuitamente a nós.
vol. - Ora, meu bom companheiro, estou contente por ouvir essas coisas. Vamos, apressemos o passo.
cris. - Não posso ir tão rápido quanto gostaria, por causa deste fardo que trago às costas.
Então vi no meu sonho que, assim que encerraram essa conversa, aproximaram-se de um pântano muito lamacento que havia no meio da campina; e, estando os dois desatentos, caíram de repente no brejo. O nome do pântano era Desânimo. Ali, portanto, viram-se atolados por algum tempo, ficando repugnantemente enlameados. Cristão, por causa do fardo que trazia às costas, começou a afundar no lodo.
vol - Ei, vizinho Cristão, onde você está ?
cris. - Na verdade, não sei dizer. Diante disso Volúvel ofendeu-se e, irritado, disse ao companheiro:
- É essa a felicidade de que você vinha me falando? Se logo na partida já nos retardamos tanto, que podemos esperar daqui até o final da jornada? Se eu escapar com vida, você pode ficar com a minha parte dessa terra magnífica.2
E, dizendo isso, num esforço desesperado saiu do lamaçal, na margem do pântano que ficava mais perto da sua casa. E lá foi ele. Cristão nunca mais o viu. Assim a Cristão restou atolar-se sozinho no pântano do Desânimo: mas assim mesmo se esforçava por alcançar a margem do pântano mais distante da sua casa e mais perto da porta estreita. Ele realmente chegou lá, mas não conseguia sair, por causa do fardo que trazia às costas. Mas vi no meu sonho que dele se aproximou um homem, cujo nome era Auxílio, que lhe perguntou o que fazia ali.
cris. - Senhor, recebi ordens de seguir por este caminho de um homem chamado Evangelista. Ele também me orientou a alcançar a porta distante, para que eu possa escapar da ira vindoura. E para lá seguia quando caí aqui.
Aux. - Mas por que você não procurou as pegadas?3
cris. - O medo que me acompanhava era tão forte que fugi pelo caminho mais próximo e caí.
Aux. - Então dê-me a sua mão. Auxílio estendeu-lhe a mão e puxou Cristão, colocando-o em solo firme e ordenando-lhe que seguisse o seu caminho (SI 40:2).
Então aproximou-se daquele que o tirou do pântano e disse:
- Senhor, se este é o caminho da Cidade da Destruição até a porta distante, por que o terreno não está aplainado para que os pobres viajantes sigam para lá com mais segurança?
Ele respondeu:
- Esse pântano lamacento é lugar que não pode ser aterrado. E a depressão para a qual correm continuamente a escória e a imundície que acompanham a condenação do pecado, por isso chama-se Pântano do Desânimo. À medida que o pecador desperta para a sua perdição, surgem na sua alma muitos medos, dúvidas e desanimadoras preocupações e todas se reúnem e se acomodam neste lugar. Essa é a razão da ruindade desse terreno.
- Não se agrada o Rei de que este lugar permaneça assim tão ruim – disse. – Seus operários, sob ordens dos inspectores de sua majestade, também vêm trabalhando ao longo desses 1600 anos neste terreno, para – quem sabe – aplainá-lo. Sim e segundo sei, aqui já afundaram pelo menos 20 mil cargas de carroções e ainda milhares e milhares de saudáveis ensinamentos que foram trazidos em todas as estações e de todos os lugares dos domínios do Rei. Os que sabem contar dizem que esses são os melhores materiais para aterrar o lugar. Se fosse assim, já poderia ter sido aterrado, mas continua ainda o Pântano do Desânimo e assim continuará quando já tiverem feito o que podem fazer.
- É verdade que há, por ordem do legislador, certas pegadas boas e essenciais, 1 espalhadas mesmo aí no meio desse Pântano – continuou – mas quando esse lugar vomita a sua imundície, como o faz quando muda o tempo, dificilmente se vêem as pegadas. Mesmo quando estão visíveis, os homens, por causa da tontura que sentem, passam directo e, apesar de as pegadas estarem ali, acabam atolados na lama. Mas o solo é bom quando eles afinal alcançam a porta."
Depois vi no meu sonho que, a essa altura, Volúvel chegava à sua casa. Então seus vizinhos vieram vê-lo, e alguns deles o chamaram sábio por ter voltado, e outros o chamaram tolo por arriscar-se ao lado de Cristão; outros chegavam a zombar da sua covardia, dizendo:
- Certamente, depois de iniciada a aventura, eu não seria vil a ponto de desistir diante de umas poucas dificuldades.
Então Volúvel, acovardado, sentou-se no meio deles. Mas afinal ganhou mais confiança e então todos eles mudaram as suas palavras e passaram a ridicularizar pelas costas o pobre Cristão. E faziam o mesmo com Volúvel

Capítulo 3

AS ARMADILHAS DO CAMINHO


Enquanto Cristão caminhava solitário, divisou alguém que vinha cruzando o campo em sua direcção; e calhou que se encontraram bem quando cruzavam o caminho um do outro. O nome do cavalheiro era sr. Sábio-segundo-o-mundo. Morava na cidade da Diplomacia Profana, cidade bem grande, e também bem próxima de onde vinha Cristão.
Esse homem já sabia algo sobre Cristão, pois a partida deste da Cidade da Destruição fora muito alardeada no estrangeiro e não só na cidade onde ele morava, virando também mexerico em alguns outros lugares. O sr. Sábio-segundo-o-mundo, portanto, tendo já alguma informação sobre Cristão, observando a sua esforçada caminhada e percebendo seus suspiros e gemidos, quis entre outras coisas conversar um pouco com Cristão.
sáb. - Como então, bom homem, você parte assim apressado e tão carregado?
cris. - De fato, sempre achei que cada pobre criatura tem o seu fardo a carregar. E se o senhor me pergunta se parto apressado, digo-lhe que busco alcançar a distante porta estreita adiante de mim, pois lá, segundo me disseram, conhecerei um modo de me livrar desse pesado fardo.
sáb - Você tem mulher e filhos?
cris"'-. - Tenho, mas estou tão sobrecarregado com esse fardo que já não encontro neles prazer como antes; para mim e como se não os tivesse (1 Cor. 7:29).
sáb. - Você acaso me ouviria se eu o aconselhasse?
cris. - Se for bom concelho, certamente, pois ando mesmo precisando disso.
sáb. - Eu o aconselharia, então, a livrar-se o mais rápido possível do seu fardo, pois só então alcançará paz na sua mente; só então poderá desfrutar dos benefícios da bênção que Deus lhe concedeu.
cris. - É isso o que busco: exactamente livrar-me desse pesado fardo, mas não posso tirá-lo de sobre os ombros, tampouco há homem em nossa terra que possa fazê-lo. Portanto sigo este caminho, como já lhe disse, para me livrar deste fardo.
sáb. - Quem mandou que você viesse por este caminho para livrar-se do seu fardo?
cris. - Um homem que me pareceu pessoa muito boa e honrada. Seu nome, se bem me lembro, é Evangelista.
Sáb. - Eu o amaldiçoo por esse conselho. Não há no mundo caminho mais perigoso e difícil que este que ele lhe indicou e isso você mesmo vai descobrir, se continuar a seguir o conselho dele. Você já se deparou com algo (como percebo), pois estou vendo a imundície do Pântano do Desânimo. Esse pântano, porém, é o início dos pesares que afligem aqueles que tomam este caminho. Ouça-me – acrescentou o sábio – sou mais velho que você! É provável que, no caminho, você encontre exaustão, dor, fome, perigos, nudez, espada, leões, dragões, trevas e, em suma, a morte, entre outras coisas. Todas elas são seguramente verdadeiras, já tendo sido confirmadas por muitas testemunhas. E por que deveria um homem condenar-se tão gratuitamente dando ouvidos a um estranho?
cris. - Este fardo às minhas costas é mais terrível para mim do que todas essas coisas que o senhor mencionou. Não, acho que é melhor não me preocupar com o que eu venha a encontrar no caminho, pois assim poderei também livrar-me do meu fardo.
Sáb. - Mas como afinal veio-lhe este fardo?
cris. - Lendo este livro que tenho nas mãos.
Sáb. - Eu já imaginava. 1 O mesmo ocorreu a outros fracos, que, metendo-se com coisas elevadas demais para si caem subitamente nessas mesmas dificuldades, que não só castram os homens – como vejo que as suas lhe fizeram – mas os levam a aventuras desesperadas para alcançar nem eles sabem o quê.
cris. - Eu sei o que quero alcançar: alívio deste meu fardo pesado.
Sáb. - Mas por que você vem procurar alívio neste caminho, vendo que há tantos perigos? Se você tivesse a paciência de ouvir-me, poderia dizer-lhe como alcançar o que deseja, sem enfrentar os perigos que este caminho lhe oferece. Veja, o remédio está à mão. E tem mais, em vez desses perigos você encontrará muita segurança, amizade e alegria.
cris. - Rogo, senhor, que me revele esse segredo.
sáb. - Ora, numa vila distante (chamada Moralidade) mora um cavalheiro cujo nome é Legalidade, homem muito sensato (e de reputação muito ilibada) que tem a capacidade de ajudar a aliviar os homens dos fardos, como os seus, que carregam nos ombros. Pelo que sei ele já fez isso muito bem.
- Além disso – continuou o sábio – ele sabe como curar aqueles que se acham com a mente um tanto perturbada por conta dos fardos que carregam. E a ele, como disse, que você deve procurar. Ele vai ajudá-lo prontamente. Sua casa não fica a mais de um quilómetro e meio daqui e se ele mesmo não estiver em casa, seu filho – um jovem muito bonito, chamado Urbanidade – é tão perito nisso (a propósito) quanto o próprio idoso pai. Garanto-lhe que ali você poderá encontrar alívio do seu fardo.
- E digo mais – acrescentou ainda o sábio – se você não estiver disposto a voltar para sua antiga casa, como de facto eu não desejaria que você fizesse, poderá mandar buscar a sua esposa e os seus filhos e instalar-se nessa vila. Nela, há hoje casas vazias, uma das quais você pode conseguir por preço razoável. Ali também encontrará mantimentos bons e baratos, mas o que irá tornar a sua vida mais feliz é que, com certeza, ali encontrará vizinhos sinceros, confiáveis e educados.
Ora, Cristão se viu um tanto indeciso, mas logo concluiu que, se era verdade o que lhe dissera esse cavalheiro, a melhor atitude a tomar seria aceitar o seu conselho. Então respondeu:
cris. - Senhor, que caminho devo tomar até a casa desse homem honesto?
sáb. - Você está vendo ao longe aquela alta colina? 2
cris. - Estou vendo, sim.
sáb. - E para lá que deve seguir. A casa dele é a primeira que você avistar.
Assim, Cristão desviou-se do seu caminho para ir até a casa do Sr. Legalidade em busca de ajuda. Mas eis que, quando já se aproximava da colina, esta pareceu-lhe tão alta e também a encosta mais próxima do caminho pendia a tal altura, que Cristão teve medo de se aventurar mais, temendo que a colina lhe caísse sobre a cabeça. Portanto ali ficou imóvel, sem saber o que fazer. Além disso, o seu fardo agora lhe parecia mais pesado do que quando ele seguia o seu caminho.
Também da colina vinham lampejos de fogo, e Cristão temeu vir a ser queimado (Êx 19:16, 18). Suava e até tremia de medo (Hb 12:21). Então começou a se arre- pender de ter aceitado o conselho do sr. Sábio-segundo-o- mundo.
Viu, então, Evangelista que vinha em sua direcção e corou de vergonha. Evangelista se aproximou mais e mais e, chegando até Cristão, olhou-o com semblante severo e temível.
evan. - O que você está fazendo aqui? - Cristão não sabia o que responder, permanecendo calado diante dele. - Você não é o homem que achei chorando dentro dos muros da Cidade da Destruição?
cris. - Sim, senhor, eu mesmo.
evan. — Não lhe pedi que seguisse o caminho que leva à portinha estreita?
cris. - Sim, senhor.
evan. - Então como é que você se desviou tão rapidamente para fora do caminho?
cris. - Encontrei um cavalheiro logo depois de passar pelo Pântano do Desânimo. Esse senhor distinto convenceu-me de que na vila ali adiante eu acharia um homem que poderia me aliviar do fardo.
evan. - Quem era ele?
cris. — Parecia um cavalheiro. Conversou bastante tempo comigo e, afinal conseguiu convencer-me. Então vim para cá. Mas quando me deparei com esta colina, vendo como se debruça por sobre o caminho, de repente parei, com medo de que caísse sobre a minha cabeça.
evan. — E o que esse cavalheiro lhe disse?
cris. - Bem, ele me perguntou aonde eu ia e eu lhe contei.
evan. — E o que mais ele lhe falou?
cris. - Perguntou se eu tinha família e eu respondi. Disse-lhe que estava tão sobrecarregado com o fardo que trago às costas que já não encontro prazer na minha família como antes.
evan. - O que ele lhe disse então?
cris. - Ele mandou que me livrasse rapidamente do meu fardo e eu lhe disse que era o alívio que eu buscava. Eu lhe disse, também, que seguia rumo à porta distante para receber mais orientações sobre como alcançar o local da libertação. Então ele disse que me mostraria um caminho melhor e mais curto, não tão repleto de dificuldades como aquele em que o senhor me colocou. Ele disse que o caminho que ele estava me ensinando leva directamente à casa de um cavalheiro que sabe como aliviar esses fardos. Então acreditei nele e desviei-me daquele caminho para tomar este outro, esperando logo me ver livre do fardo. Mas, chegando aqui, vi as coisas como são e parei com medo (como disse) do perigo. Agora não sei o que fazer.
evan. - Então continue parado para que eu possa mostrar-lhe as palavras de Deus. - E Cristão ficou ali tremendo. - "Tende cuidado, não recuseis ao que fala. Pois, se não escaparam aqueles que recusaram ouvir quem divinamente os advertia sobre a terra, muito menos nós, os que nos desviamos daquele que dos céus nos adverte" (Hb 12:25). - Disse também: — Ora, "o meu justo viverá pela fé, e: Se retroceder, nele não se compraz a minha alma" (Hb.10:38). - Depois ainda aplicou-lhe as palavras: - Você é esse homem que se encaminha para essa miserável condição. Você passou a rejeitar o conselho do Altíssimo e desviou seus pés do caminho da paz, chegando mesmo a arriscar-se à perdição. Então Cristão prostrou-se aos seus pés, corno morto, lamentando-se:
- Ai de mim, que estou arruinado! (Is.6:5) - Diante disso, Evangelista tornou-o pela mão direita, dizendo:
- "Todo pecado e blasfémia serão perdoados ao homem" (Mt.12:31; Mc.3:28), portanto "não sejas incrédulo, mas crente" (João 20:27).
Então Cristão ganhou um pouco de alento e se pôs de pé ainda tremendo, como antes, diante de Evangelista, que lhe disse:
- Preste mais atenção às coisas que lhe contarei agora. Vou dizer-Lhe quem foi que o iludiu e a quem ele o enviou. O homem que você encontrou é um Sábio-segundo-o-mundo. Ele é assim chamado e com justiça, porque em parte só valoriza a doutrina deste mundo e portanto sempre vai à igreja na cidade da Moralidade e em parte porque ama acima de tudo essa doutrina, pois o salva da cruz. Como a índole desse Sr. Sábio é carnal, ele procura evitar os meus caminhos, embora correios,
- Ora — continuou Evangelista — há três coisas no conselho desse homem que você deve abominar completamente. Primeiro, o facto de ele ter desviado você do caminho. Segundo, o facto de ele ter-se esforçado por tornar a cruz odiosa para você. E, finalmente, o facto de ele ter mandado você trilhar o caminho que conduz à morte.
- Portanto — disse ainda Evangelista — você precisa, em primeiro lugar, abominar a tentativa que ele fez de desviá-lo do caminho, assim como o seu próprio consentimento, pois isso equivale a rejeitar o conselho de Deus, em favor do conselho de um Sábio-segundo-o-mundo. Diz o Senhor: "Esforçai-vos por entrar pela porta estreita" (Lc.13:24), a porta para a qual enviei você, pois "estreita é a porta... que conduz para a vida e são poucos os que acertam com ela" (Mt.7:13,14). Dessa portinha estreita e desse caminho que a ela conduz, é que esse homem ímpio desviou você, para levá-lo quase à destruição. Odeie, portanto, essa sua tentativa de desviar-se do caminho e abomine a você mesmo por ter dado ouvidos a ele.
- Em segundo lugar — continuou — você precisa aborrecer o esforço desse Sr. Sábio no sentido de fazê-lo odiar a cruz, pois você deve preferi-la aos tesouros do Egipto (Hb.11:26). Ademais o Rei da Glória já lhe disse que "quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á" (Mc.8:35) e que aquele que o segue "e não aborrece a seu pai, mãe, mulher, filhos, irmãos, irmãs e ainda a sua própria vida, não pode ser meu discípulo" (Lc.14:26). O que estou dizendo é que, se um homem se esforça por convencê-lo de que isso será a sua morte, você deve odiar tal doutrina, pois sem a verdade você não pode ter vida eterna.
- Em terceiro lugar — disse Evangelista — você precisa odiar o facto de esse homem tê-lo colocado no caminho que conduz à morte. Mas, para isso, você tem de considerar a pessoa para quem ele o enviou e também o fato de que ela é incapaz de libertá-lo do seu fardo. — E Evangelista ainda disse a Cristão:
- Aquele a quem você foi enviado para encontrar alívio e que se chama Legalidade, é filho da mulher escrava (Gl.4:21-31), que está acorrentada junto com os seus filhos e envolta em mistério. Ela é hoje este monte Sinai, que você temeu que caísse sobre a sua cabeça. Ora, se ela e seus filhos estão acorrentados, como você pode esperar deles a liberdade?
— Esse Legalidade, portanto — continuou — não é capaz de libertá-lo do seu fardo. Homem nenhum jamais foi libertado do seu fardo por intermédio dele e provavelmente jamais o será. Ninguém pode ser justificado pelas obras da lei, pois pêlos actos da lei nenhum homem vivente pode se livrar do seu fardo.
- Portanto — concluiu Evangelista — o Sr. Sábio-se-gundo-o-mundo é adversário e o Sr. Legalidade, impostor; e quanto ao seu filho Urbanidade, não obstante a sua falsa aparência sorridente, não passa de um hipócrita que não pode ajudá-lo. Creia-me: nada há em todas essas bobagens que você ouviu desse estúpido, a não ser o intento de afastá-lo da sua salvação, desviando-o do caminho no qual coloquei você.
Depois disso Evangelista invocou do céu, em voz alta, a confirmação daquilo que dissera e então saíram palavras e fogo da montanha sob a qual se achava o pobre Cristão, que ficou de cabelos arrepiados diante do espectáculo. As palavras foram estas: "Todos quantos, pois, são das obras da lei, estão debaixo de maldição: porque está escrito: “Maldito todo aquele que não permanece em todas as coisas escritas no livro da lei, para praticá-las" (Gl.3:10). Assim Cristão nada mais esperava a não ser a morte e lamentava-se deploravelmente, amaldiçoando até o momento em que encontrou o Sr. Sábio-segundo-o-mundo e ainda chamando-se mil vezes obtuso por ter dado ouvidos ao seu conselho. Sentia-se também muito envergonhado, ponderando como os argumentos desse distinto senhor, oriundos que eram somente da carne, puderam prevalecer nele e levá-lo a abandonar o caminho recto. Isso feito, dirigiu-se novamente a Evangelista, dizendo:
cris. - O que o senhor acha? Ainda há esperança? Será que posso voltar e seguir até a porta estreita? Não serei abandonado por isso, ou enviado de volta coberto de humilhação? Lamento muito ter dado ouvidos ao conselho desse homem, mas que meu pecado me seja perdoado.
evan. — O seu pecado é muito sério, pois você praticou dois males: abandonou o bom caminho e trilhou caminhos proibidos. Contudo, o porteiro vai recebê-lo, pois demonstra boa vontade para com os homens. Mas cuidado para que não se desviar novamente, para não perecer pelo caminho quando em breve a sua ira estiver acesa (SI 2:12).
Então Cristão disse que voltaria, e Evangelista, depois de beijá-lo, sorriu-lhe, desejando-lhe sucesso. Cristão partiu apressado; não falou com homem algum pelo caminho e, se alguém o interpelava, tampouco dava-lhe resposta.
Seguia como alguém que trilhasse sempre solo proibido e não se julgou seguro enquanto não retomou o caminho que deixara para seguir o conselho do Sr. Sábio-segundo-o-mundo.

Caoítulo 4

CRISTÃO CHEGA FINALMENTE À PORTA ESTREITA


Cristão afinal alcançou a porta. Ora, acima do portão estava escrito: "A quem bate, abrir-se-lhe-á" (Mt.7:8). Portanto ele bateu, mais de uma ou duas vezes, dizendo:
Posso entrar? Quem do outro lado está
Que para um pobre homem a porta abrirá?
Rebelde sei que sou, mas isto prometo:
Louvá-lo para sempre com mil sonetos.
Afinal apareceu à porta um homem circunspecto, de nome Boa Vontade, perguntando quem lá estava, de onde vinha e o que pretendia.
cris. — Eis aqui um pobre pecador sobrecarregado. Venho da Cidade da Destruição, mas rumo para o monte Sião, para ali me libertar da ira que há de vir. Portanto, senhor, como fui informado de que por esta porta passa o caminho até lá, ouso pedir que me deixe passar.
boa vontade — É de todo o coração que o faço — disse ele, já abrindo a porta1. Então, quando Cristão entrava, o homem o puxou.
- Por que isso? — Perguntou Cristão.
- A pouca distância daqui ergue-se um sólido castelo, capitaneado por Belzebu.2 De lá ele e os que o acompanham atiram flechas contra aqueles que chegam até esta porta, para que assim morram antes de entrar.
- Alegro-me e tremo. Estando Cristão já lá dentro, o homem da porta lhe perguntou:
- Quem o mandou aqui?
cris. — Evangelista mandou-me vir até aqui e bater, como fiz. Ele garantiu-me que o senhor me diria o que devo fazer.
boa vontade - Diante de você há uma porta aberta, que ninguém pode fechar (Ap.3:8).
cris. - Agora começo a colher os benefícios dos riscos que corri.
boa vontade - Mas por que veio sozinho?
cris. - Nenhum dos meus vizinhos viu, como eu, o perigo que correm.
boa vontade - Acaso alguém dentre eles soube da sua vinda?
cris. - Sim, minha mulher e meus filhos me viram sair e me chamaram de volta. Também alguns dos meus vizinhos ficaram lá gritando, chamando-me de volta; mas tapei os ouvidos e segui meu caminho.
boa vontade - Mas nenhum deles o seguiu para convencê-lo a voltar?
cris. - Seguiram-me Obstinado e Volúvel. Porém quando viram que não conseguiam me demover, Obstinado voltou praguejando, mas Volúvel acompanhou-me ainda um pouco.
boa vontade - Por que, então, ele não chegou até aqui?
cris. - Na verdade vínhamos juntos, até chegarmos ao Pântano do Desânimo, onde caímos de repente. Então meu vizinho Volúvel desanimou-se e não quis aventurar-se além.3 Assim, saindo do pântano no lado mais próximo da sua casa, ele me disse que eu poderia tomar posse sozinho, por ele também, da terra magnífica. Então ele seguiu seu caminho, e eu tomei o meu. Ele atrás de Obstinado, eu até esta porta.
boa vontade - Pobre coitado. Será que tem ele a glória celeste em tão pouca estima que julgou não valer a pena enfrentar o risco de algumas dificuldades para alcançá-la?
cris. - Certamente. Falei a verdade sobre Volúvel, mas também quero falar toda a verdade sobre mim, pois aí se verá que eu não sou nem um pouco melhor do que ele. É verdade que ele voltou para casa, mas também eu me desviei e tomei o caminho da morte. Fui convencido pêlos argumentos mundanos de um certo Sr. Sábio-se-gundo-o-mundo.
boa vontade - Ah, então ele o abordou! Ora, certamente ele o teria mandado buscar alívio pelas mãos do Sr. Legalidade. Os dois são grandes enganadores. Mas então você aceitou seus conselhos?
cris. - Aceitei, até onde me restou coragem. Saí à procura do tal Sr. Legalidade, mas, chegando perto da casa dele, pensei que a montanha que se ergue ali fosse cair sobre mim, então fui forçado a parar.
boa vontade - Essa montanha já representou a morte de muita gente e será ainda morte para muitos mais. Sorte você não ter sido esmigalhado por ela.
cris. - Bem, na verdade não sei o que seria de mim se, por sorte, Evangelista não tivesse me encontrado ali novamente, quando eu já me via perdido. Mas foi por misericórdia divina que ele chegou até mim outra vez, senão eu jamais teria chegado até aqui. Porém aqui estou eu, que mais merecia a morte naquela montanha do que estar aqui conversando com o meu Senhor. Quanta graça encontrei: ser-me permitido entrar aqui!
boa vontade: - Não levantamos objecções contra ninguém. Pouco importa tudo o que tenham feito antes de vir aqui, pois de modo nenhum são lançados fora (João 6:37). Sendo assim, meu bom Cristão, venha comigo que lhe ensinarei algo sobre o caminho que você deve trilhar. Olhe à frente. Está vendo este caminho estreito? É este o caminho que você deve tomar. Foi aberto pêlos patriarcas, pêlos profetas, por Cristo e seus apóstolos, e é tão recto quanto o pode fazer uma régua. É este o caminho que você deve seguir.
cris. - Mas não há desvios nem curvas que me façam perder o caminho?
boa vontade - Há, sim, muitos caminhos que partem deste para baixo. São caminhos sinuosos e largos. Mas você poderá distinguir o errado do certo assim: só este é recto e estreito (Mt.7:13-14).
Então vi no meu sonho que Cristão lhe perguntava ainda se ele não poderia ajudá-lo a aliviar o fardo que trazia às costas, pois até então não se livrara dele, nem poderia de modo nenhum tirá-lo sem auxílio. Boa Vontade lhe disse:
- Quanto ao fardo, contente-se em carregá-lo, até chegar ao local da libertação4 pois lá por si só cairá das suas costas.
Então Cristão se preparou para iniciar a caminhada. Boa Vontade disse-lhe que, estando já a certa distância da porta, chegaria à casa de Intérprete. Ali deveria bater, pois o anfitrião lhe mostraria coisas excelentes. Assim Cristão despediu-se do amigo, que novamente lhe desejou boa sorte.

Capítulo 5

CRISTÃO ENCONTRA-SE COM INTERPRETE


Cristão continua seu caminho até chegar à casa de Intérprete, onde bateu à porta várias vezes. Afinal alguém apareceu, perguntando quem era ele. Cristão identificou-se:
- Sou um viajante, senhor. Um conhecido do bom homem desta casa enviou-me aqui para o meu próprio bem. Gostaria, pois, de falar com o dono da casa.
Então o homem foi lá dentro chamar o dono da casa, que logo depois apareceu para falar com Cristão, perguntando-lhe o que queria.
cris. - Senhor, venho da Cidade da Destruição e me dirijo ao monte Sião. O homem que fica à porta me disse no início deste caminho que, se eu batesse aqui, o senhor me mostraria coisas excelentes, coisas que me seriam proveitosas na jornada.
int. - Entre. Vou mostrar-lhe algo que lhe será proveitoso.
Mandou então seu servo acender a vela1, e fez sinal para que Cristão o acompanhasse. Levou-o a um aposento e mandou o servo abrir a porta. Feito isso, Cristão viu pendurado na parede o quadro de uma pessoa bastante séria. Era esta a sua aparência: os olhos estavam erguidos aos céus; nas mãos trazia o melhor dos livros; a lei da verdade lhe estava escrita nos lábios; o mundo estava às suas costas; pela postura parecia apelar aos homens e da cabeça lhe pendia uma coroa de ouro.
cris. - O que significa isso?
int. - O homem cuja figura você está vendo é um dentre mil. Pode gerar filhos, dá-los à luz e ainda amamentá-los ele mesmo, depois. E se você o vê de olhos erguidos aos céus, com o melhor dos livros nas mãos e a lei da verdade gravada nos lábios, é para mostrar-lhe que o trabalho dele é conhecer e revelar coisas sombrias aos pecadores, como também apelar aos homens.
- Se você vê o mundo às suas costas — continuou Intérprete — e uma coroa pendendo da cabeça dele, isso é para mostrar-lhe que, desprezando e desdenhando as coisas presentes pelo amor com que serve ao seu Mestre, certamente terá por recompensa a glória, no mundo que há de vir.
- Ora — disse ele ainda — mostrei-lhe primeiro este quadro porque o homem cuja figura você está vendo é o único homem a quem o Senhor do lugar para onde você está indo autorizou para guiá-lo em todos os lugares difíceis que você talvez encontre pelo caminho. Portanto preste bastante atenção ao que lhe mostrei. Guarde bem o que você viu, para que não encontre, durante a sua jornada, alguém que finja estar encaminhando você ao rumo certo, quando na verdade o está levando à ruína e à morte.
Então Intérprete o tornou pela mão e o levou a uma sala bem grande, cheia de poeira, pois jamais era varrida. Depois de examiná-la, Intérprete mandou um homem varrê-la. Ora, começando ele a varrer, o pó ergueu-se tão abundante que Cristão quase sufocou. Disse então Intérprete a uma jovem que estava ali ao lado:
- Traga água e borrife um pouco na sala. Feito isso, a sala pôde ser varrida e limpa com prazer.
cris. - O que significa isso?
int. - Esta sala é o coração do homem que jamais foi santificado pela doce graça do Evangelho. A poeira é seu pecado original e as corrupções mais íntimas que macularam todo o homem. Aquele que começou a varrer primeiro é a lei, mas a que trouxe água e a borrifou, é o Evangelho. Ora, você mesmo viu que assim que o homem começou a varrer, a poeira levantou, tornando impossível limpar a sala. Você quase sufocou. Isso foi para mostrar-lhe que a lei, em vez de limpar (pela sua acção) o coração do pecado, na verdade o faz reviver, o fortalece e o amplia na alma, ainda que o revele e proíba, pois não dá força para subjugar.
- Depois — continuou ele — você viu a jovem borrifar a sala com água, podendo então limpá-la com prazer. Isso é para mostrar-lhe que quando o Evangelho entra no coração com sua influência doce e inestimável, o pecado é conquistado e subjugado, da mesma forma como você viu a jovem fazer pousar a poeira borrifando o chão com água. A alma se faz limpa pela fé, preparando-se consequentemente para que o Rei da Glória a habite.
Vi ainda no meu sonho que Intérprete tomou Cristão mais uma vez pela mão e o levou a um quarto apertado, onde se viam dois menininhos sentados, cada qual em sua cadeira. O nome do mais velho era Paixão, e o outro chamava-se Paciência. Paixão parecia muito insatisfeito, mas Paciência permanecia bem tranquilo. Então perguntou Cristão:
- Qual o motivo do descontentamento de Paixão?
- Seu tutor quer que ele espere, que as melhores coisas lhe virão no início do ano que vem. Mas ele as quer agora. Paciência, no entanto, se dispôs a aguardar.
Vi então que alguém se aproximou de Paixão e, trazendo-lhe um saco, derramou um tesouro aos seus pés. Ele o tomou, alegrou-se e ainda riu-se de Paciência, zombeteiro. Continuei a observar e notei que Paixão logo dissipou tudo, nada lhe restando senão farrapos.
- Explique-me melhor esse assunto – pediu Cristão a Intérprete.
int. - Esses dois meninos são simbólicos: Paixão representa os homens deste mundo e Paciência, os homens do mundo que há de vir. Pois, como você está vendo aqui, Paixão quer tudo agora, este ano, ou seja, neste mundo. São assim os homens deste mundo; eles precisam ter todas as boas coisas agora; não podem aguardar até o ano que vem, ou seja, até o mundo vindouro, para receber o seu quinhão de benefícios. Intérprete continuou dizendo:
— O provérbio "Mais vale um pássaro na mão que dois voando" tem para eles mais autoridade do que todos os testemunhos divinos do bem do mundo que há de vir. Mas como você mesmo viu, Paixão esbanjou tudo rapidamente e nada lhe restou agora senão farrapos. Assim acontecerá aos homens dessa espécie quando do final deste mundo.
cris. - Agora vejo que Paciência exibe a sabedoria mais perfeita e isso por duas razões: Primeiro porque aguarda as melhores coisas. E, segundo, porque também terá a glória, enquanto ao outro nada resta senão farrapos.
int. - Você pode acrescer ainda esta outra: a glória do mundo vindouro jamais se gastará, mas as daqui subitamente passam. Sendo assim, Paixão não teve tanto motivo para rir de Paciência só por ter recebido as boas coisas primeiro. Quanto a Paciência, terá de rir-se de Paixão por receber as melhores coisas por último, pois o primeiro precisa dar lugar ao último, já que o último também terá a sua hora. O último, porém, não cede o lugar a ninguém, pois não há quem venha depois dele.
- Aquele portanto que recebe primeiro o seu quinhão – disse-lhe Intérprete – deve sem dúvida ter a oportunidade de gastá-lo; porém aquele que receber a sua porção por último a terá para sempre. Logo, diz-se do rico: "Recebeste os teus bens em tua vida e Lázaro igualmente os males; agora, porém, aqui, ele está consolado; tu, em tormentos" (Lc.16:25).
cris. - Então percebo que não é melhor cobiçar as coisas que hoje existem, mas esperar pelas que hão de vir.
int. — Você diz a verdade, "porque as coisas que se vêem são temporais e as que se não vêem são eternas" (2 Cor.4:18). Mas mesmo assim, como as coisas presentes e nosso desejo carnal são vizinhos tão próximos um do outro e como as coisas que virão e o sentido carnal são tão estranhos um para o outro, é natural que aqueles se tornem tão rapidamente amigos e que a distância entre estes se mantenha.
Então vi no meu sonho que Intérprete tomava Cristão pela mão e o levava a um lugar onde se via uma fogueira ardendo diante de uma parede. Ali havia alguém que não saía de perto, jogando sempre muita água na fogueira com a intenção de apagá-la. Mas as chamas aumentavam e ficavam cada vez mais quentes.
- O que significa isso? — Perguntou Cristão.
- Esta fogueira – respondeu Intérprete – é a obra da graça que se opera no coração. Aquele que joga a água, tentando apagá-la e extingui-la, é o Diabo; mas você pode ver que o fogo, assim mesmo, fica sempre maior e mais quente. Você também verá a razão disso.
Então ele o levou para trás da parede, onde se via um homem com um vaso de óleo nas mãos. Ele, em segredo, derramava continuamente óleo no fogo. Disse Cristão:
- O que isso significa?
- Este é Cristo, que continuamente, com o óleo da sua graça, mantém viva a obra já iniciada no coração e por meio dessa obra, a despeito de tudo o que pode fazer o Diabo, as almas dos crentes se provam piedosas. Mas você observou também que o homem fica atrás da parede para alimentar o fogo. Isso é para ensinar-lhe que é difícil para aquele que é tentado ver como essa obra graciosa se conserva na alma.
Vi também que Intérprete tomava-o novamente pela mão, levando-o até um lugar agradável, onde se erguia um imponente castelo, belo de admirar. Cristão exultou diante da visão. Viu ele também que, no terraço do castelo, algumas pessoas caminhavam, vestidas todas de ouro.
- Podemos entrar? — Perguntou Cristão.
Intérprete então tomou-lhe a mão e o levou até a porta do castelo e eis que, à porta, havia um grande ajuntamento de homens, todos desejosos de entrar, mas nenhum deles ousava fazê-lo. Ali também estava sentado um homem, a pouca distância da porta, ao lado de uma mesinha e sobre esta via-se um tinteiro e um livro, no qual ele anotava o nome daquele que haveria de entrar.
Cristão viu também que no vão da porta havia muitos homens que, trajando armaduras, barravam a passagem, determinados a fazer todo dano e mal que pudessem àquele que tentasse entrar. Cristão ficou ali absorto. Por fim, quando todos começaram a recuar com medo dos homens armados, Cristão viu um homem de semblante bem resoluto aproximar-se do que estava sentado escrevendo e disse: - Anote o meu nome, senhor.
Viu então que o homem desembainhava a espada e colocava um capacete na cabeça, avançando rumo à porta, contra os homens armados, que sobre ele caíram com força mortal. O homem, porém, não se deixou esmorecer e, mesmo caído, golpeava e talhava ferozmente. Assim, depois de ser ferido e ferir muitos dos homens que tentavam evitar a sua entrada, conseguiu abrir caminho em meio a todos eles, entrando no palácio.
Ouviu-se, então, uma bela voz vinda dos que estavam lá dentro, dos três mesmos que caminhavam no terraço do palácio, e dizia:
Entre, entre; Glória aqui você terá para sempre.
Então ele entrou e se vestiu com os mesmos trajes dos outros. Cristão sorriu e disse:
- Acho, em verdade, que já sei o significado disso. Agora, deixe-me seguir adiante.
- Não, fique aqui – exclamou Intérprete – até que eu lhe mostre um pouco mais. Depois você poderá seguir o seu caminho.
Então Intérprete novamente o tomou pela mão e o levou a um recinto muito escuro, onde se via um homem sentado atrás de grades de ferro.2
Ora, o homem parecia muito triste. Estava ali sentado com os olhos pregados no chão, as mãos unidas, e suspirava como se trouxesse o coração amargurado. Disse Cristão:
- O que significa isso? – Intérprete pediu-lhe que conversasse com o homem.
- O que você é? – Perguntou Cristão.
- Sou o que antes não era – respondeu o homem.
cris. — O que você era?
homem — Antes era um professor3 formoso e bem-sucedido, tanto aos meus próprios olhos quanto aos olhos dos outros. Pensava que estava destinado a subir até a Cidade Celestial e então até me alegrava diante da ideia de que lá chegaria.
cris. — Sim, mas o que você é agora?
homem — Hoje sou um homem desesperado e no desespero estou preso, como nessas grades de ferro. Não posso sair. Ah, já não posso mais.
cris. — Mas como é que você chegou a esta condição?
homem — Deixei de vigiar, de me manter sóbrio. Larguei as rédeas no pescoço das minhas paixões. Pequei contra a luz da palavra e a bondade de Deus. Entristeci o Espírito e ele se foi. Tentei o Diabo e ele me veio. Provoquei a ira de Deus e ele me abandonou. Tanto endureci o meu coração, que já não posso me arrepender.
- Mas então não há esperança para um homem como este – disse Cristão a Intérprete.
- Pergunte a ele.
cris. - Então não há esperança? Você tem de continuar preso atrás dessas grades de ferro, em desespero?
homem — Esperança nenhuma.
cris. - Por quê? Se o Filho do Bem-Aventurado é sobremodo misericordioso?
homem - Eu o crucifiquei de novo para mim mesmo; desprezei a sua pessoa; desdenhei da sua justiça; tive o seu sangue como coisa ímpia, ultrajei o Espírito da graça (Hb.10:29). Portanto distanciei-me de todas as promessas e agora nada me resta senão ameaças, terríveis ameaças, temíveis ameaças de segura condenação e feroz indignação, que me irão devorar como um adversário.
cris. - Por conta do que você se deixou cair em tal estado? homem - Pelas paixões, prazeres e proveitos deste mundo, e ao gozá-los prometi a mim mesmo muito deleite. Mas agora cada uma dessas coisas me rói e me atormenta como verme ardente.
cris. - Mas agora você não pode se arrepender e voltar atrás?
homem - Deus me negou o arrependimento. Sua Palavra não me encoraja a crer. Sim, ele mesmo me trancou atrás destas grades de ferro e nem todos os homens do mundo podem me libertar. Ah, eternidade! Eternidade! Como lutar contra a miséria que me aguarda na eternidade? Lembre-se da miséria deste homem. Chie isto lhesirva como incessante alerta — disse Intérprete a Cristão.
cris. - Bem, isso é terrível. Deus me ajude a vigiar, a ter comedimento e a orar para evitar a causa da miséria deste homem. Senhor, já não é hora de eu retomar o meu caminho?
int. - Espere. Quero mostrar-lhe ainda outra coisa. Depois poderá seguir o seu caminho.
Assim novamente ele tomou Cristão pela mão e o levou a uma câmara, onde alguém se erguia da cama e, vestindo as roupas, tremia e estremecia. Admirou-se Cristão: - Por que este homem treme tanto?
Intérprete mandou que o homem contasse a Cristão por que agia assim. Ele tomou a palavra e disse:
- Esta noite, estando eu dormindo, sonhei e eis que os céus ficaram profundamente negros. Também trovejava e relampejava do modo mais terrível, tanto que entrei em agonia. No meu sonho, ergui os olhos e vi o vento soprando as nuvens de uma maneira esquisita. Ouvi depois um grande clangor de trombeta e vi também um homem sentado sobre uma nuvem, servido pêlos milhares dos céus, todos envoltos em chamas ardentes, assim como também os céus. — O homem continuou:
- Ouvi então uma voz que dizia: "Levantai, mortos e vinde ao juízo". E diante disso as rochas se fenderam, os sepulcros se abriram e os mortos que lá estavam saíram. Alguns deles se mostravam incrivelmente contentes e olhavam para o alto. Alguns procuravam se esconder sob as montanhas. Então olhei para o homem que estava sentado sobre a nuvem e o vi abrir o livro, convocando o mundo para junto de si. Porém, por força de uma de uma labareda ardente que emanava dele, havia uma distância conveniente entre ele e os outros, como entre o juiz e os prisioneiros num tribunal.
- Também ouvi — disse ele — forte clamor proclamar aos que serviam o homem sentado na nuvem: "Ajuntai o joio, a palha e o restolho e lançai tudo no lago de fogo". E imediatamente se abriu o abismo sem fundo, bem abaixo de onde eu me encontrava e lá de dentro jorravam brasas ardentes e fumaça, acompanhadas de sons horripilantes. Às mesmas pessoas se disse:
"Recolhei o trigo no meu celeiro" (Lc.3:17; Mt.3:12) E com isso vi muitos serem arrebatados e alçados às nuvens. Mas eu fiquei. Também procurei eu mesmo me esconder, mas não conseguia, pois o homem sobre a nuvem não tirava os olhos de mim. Meus pecados também me vieram à mente e minha consciência me acusava a cada passo. Foi aí que acordei.
cris. — Mas o que foi que o deixou com tanto medo dessa visão?
homem. — Ora, pensei que o dia do juízo chegara e que eu não estava pronto para ele. Mas isso muito me apavorou, pois os anjos arrebataram vários e me deixaram para trás; ademais o abismo do inferno abriu-se bem onde eu estava. Minha consciência também me afligia no íntimo; e enquanto eu pensava essas coisas, o juiz não tirava os olhos de mim, revelando indignação no semblante. – Depois disse Intérprete a Cristão:
- Você já reflectiu sobre todas essas coisas?
cris. - Já e elas me incutem esperança e medo.
int. - Bom, lembre-se bem de tudo isso, para que lhe seja espinho na carne, que o faça avançar pelo caminho que você deve seguir.
Então Cristão foi se aprontar para retomar a jornada. Mas disse-lhe ainda Intérprete:
- O Consolador esteja sempre com você, bom Cristão, para guiá-lo pelo caminho que conduz à Cidade. Assim partiu Cristão, dizendo:
Coisas raras e proveitosas vi;
Coisas agradáveis, temíveis; e o que vi aquiMe fortaleça naquilo que me propus fazer.Que eu nelas pondere para compreenderPor que me foram mostradas e que seja eu,O bom Intérprete, grato ao conselho teu.

Capítulo 6

CRISTÃO CHEGA À CRUZ E LIVRA-SE DO FARDO


Em meu sonho vi que a estrada pela qual Cristão havia de seguir era murada dos dois lados e o muro chamava-se Salvação. Por este caminho, portanto, corria o sobrecarregado Cristão, mas não sem grandes dificuldades, por causa do fardo às costas.
Correu assim até alcançar um local íngreme, no alto do qual erguia-se uma cruz e pouco abaixo, no vale, um sepulcro. Vi no meu sonho que assim que Cristão chegou à cruz, seu fardo, afrouxando, escorregou pêlos seus ombros, caiu-lhe das costas e, tombando, foi descendo até a entrada do sepulcro, onde caiu e não mais o enxerguei.
Então ficou Cristão alegre e aliviado1 e disse de coração exultante:
- Ele me deu repouso, pela sua angústia e pela vida e pela morte.
E ali permaneceu algum tempo, olhando e admirando-se, pois ficara muito surpreso ao perceber que a visão da cruz o aliviava assim do seu fardo. Olhou portanto e olhou novamente, até que as fontes da sua cabeça manassem água, que lhe escorria pelo rosto.
Estando Cristão a olhar e chorar, eis que três Seres Resplandecentes se aproximaram dele e o saudaram dizendo: "A paz seja contigo". E o primeiro lhe disse:
"Os teus pecados estão perdoados" (Mc.2:5). O segundo o despiu dos farrapos e o vestiu com nova muda de roupas (Zc.3:3-5). O terceiro ainda gravou-lhe um sinal na testa, deu-lhe um rolo com um selo e mandou Cristão observá-lo durante o caminho, devendo entregá-lo no Portão Celestial. Os três então partiram. Cristão deu três Saltos de alegria e seguiu cantando:
Sobrecarregado de pecados até aqui vim,Nem pude aliviar o pesar, pesar sem fim,Que até aqui trazia. Ah, lugar ditoso!Início será de viver venturoso?Será que aqui o fardo das costas me cairá?

Aqui a amarra que a mim o prende romperá? Bendita cruz! Bendito sepulcro! Seja exaltado O Homem que por mim foi humilhado.2

Capítulo 7

CRISTÃO SOBE O DESFILADEIRO DA DIFICULDADE



Vi então no meu sonho que Cristão prosseguiu até afinal chegar a um vale, onde divisou, ao largo do caminho, três homens profundamente adormecidos, com grilhões nos tornozelos. O nome de um deles era Simplório; outro chamava-se Indolência e o terceiro, Presunção.
Cristão, vendo-os deitados assim, aproximou-se deles para ver se – quem sabe – os acordava. E, então, bradou:
- Vocês acaso são como os que dormem no alto do mastro? (Pv.23:34). Pois o mar Morto está debaixo de vocês, abismo sem fundo. Despertem, portanto, e venham; se se mostrarem dispostos, também possa ajudá-los a livrar-se das cadeias. Se aquele que espreita como leão rugidor passar por aqui, certamente vocês serão presa fácil das suas garras (Ef.5:8).
Ouvindo isso, abriram os olhos e responderam assim:
- Não vejo perigo — disse Simplório.
- Quero dormir só um pouco mais — falou Indolência.
- Toda pipa deve ficar de pé sobre o próprio fundo; que outra resposta devo dar-lhe?
E assim voltaram a dormir e Cristão seguiu caminho1. Perturbou-se, porém, ao pensar que os homens expostos a tal perigo pudessem estimar tão pouco a bondade daquele que tão graciosamente lhes oferecia auxílio, tanto por despertá-los como por aconselhá-los, oferecendo-se também para ajudá-los a livrar-se dos grilhões. Estando Cristão ainda ali, preocupado, vislumbrou dois homens pulando o muro pelo lado esquerdo do caminho estreito; e o alcançaram, pondo-se ao lado dele. O nome do primeiro era Formalista e o segundo chamava-se Hipocrisia. Assim, como eu já disse, dele se aproximaram e Cristão pôs-se a conversar com eles:
cris. — De onde vêm os cavalheiros, e para onde vão?
form.e hip. — Nascemos na Terra da Vanglória e vamos louvar no monte Sião.
cris. - Por que não vieram pela porta que fica no começo do caminho? Os senhores porventura não sabem que está escrito que aquele que entra, não pela porta, mas sobe por outra parte qualquer, é ele mesmo ladrão e salteador? (João 10:1).
form.e hip - Soubemos que toda a gente daqui achava que ir até a porta só para entrar era perda de tempo e que portanto a maneira habitual era tomar um atalho e pular o muro, como eles já haviam feito.
cris. - Mas, violando assim a vontade revelada do Senhor da cidade para a qual seguimos, será que ele não os terá como transgressores?
form. e hip. - Disseram-lhes que, quanto a isso, eles não precisavam se preocupar; pois o que fizeram é seu costume e podem apresentar testemunho, se necessário for, de que isso já acontece há mais de mil anos.2
cris. - Mas será que essa sua prática resistirá a um julgamento perante a lei?
form. e hip. - Disseram que esse costume, sendo de tão longa data, mais de mil anos, sem dúvida seria admitido como acto legal por qualquer juiz imparcial. E além disso, se estamos aqui no caminho, que diferença faz se chegamos por esta ou aquela entrada? Se estamos aqui, estamos e pronto. Você está no caminho e, pelo jeito, entrou pela porta; mas nós que pulamos o muro também estamos no caminho. Em que aspecto é a sua condição melhor que a nossa?
cris. - Eu caminho segundo a regra do meu Mestre; vocês caminham segundo o tosco raciocínio das suas fantasias. Vocês já são tidos como ladrões pelo Senhor do caminho; portanto, duvido que no final do caminho venham a ser tidos como homens verdadeiros. Entraram por conta própria, sem a orientação dele e seguirão por conta própria, sem a misericórdia dele.
Ouvindo isso, pouco argumentaram; mandaram apenas que ele cuidasse da sua vida. Vi então que prosseguiam, cada qual no seu caminho, sem muita conversa uns com os outros. Esses dois homens, porém, disseram a Cristão que não duvidavam de leis e mandamentos, mas que os cumpririam tão conscienciosamente quanto ele. Logo, ralaram:
- Não vemos em que você difere de nós, senão pela capa que traz às costas, que, supomos, lhe foi dada por alguns dos seus vizinhos para esconder a vergonha da sua nudez.
cris. - Por leis e mandamentos vocês não serão salvos, pois não entraram pela porta. Quanto a esta capa que trago às costas, me foi dada pelo Senhor do lugar para onde vou e isso, como vocês dizem, para cobrir a minha nudez. E a tenho como sinal da bondade dele para comigo, pois antes nada tinha senão trapos; além do mais, assim me consolo pelo caminho. Certamente, creio eu, quando chegar ao portão da cidade, o Senhor de lá me reconhecerá como um dos seus, pois trago a sua capa às costas; capa que ele me deu gratuitamente no dia em que me despi dos meus trapos.
- Tenho além disso um sinal na testa – continuou Cristão – do qual talvez vocês ainda não se tenham dado conta, sinal esse que um dos companheiros mais íntimos do meu Senhor gravou aqui no dia em que meu fardo me caiu dos ombros. Digo-lhes, ainda, que me foi dado na ocasião um rolo selado, para eu me consolar pelo caminho com sua leitura. Recebi também ordens de entregá-lo no Portão Celestial, como sinal da certeza de que poderei entrar; tudo isso são coisas de que duvido que vocês sintam falta e desejem, pois não entraram pela porta.
A essas palavras não tiveram resposta; apenas entreolharam-se e riram. Então vi que seguiram caminho eles todos, excepto Cristão, que se retardou, pois já não tinha o que conversar com eles e agora só consigo falava, às vezes suspirando, às vezes aliviado. Também muitas vezes lia o rolo que um dos Seres Resplandecentes lhe dera, com o que se revigorava.
Acho então que eles todos prosseguiram até chegar ao sopé de um morro, onde, na baixada, via-se uma fonte. Também no mesmo lugar havia dois outros caminhos além daquele que, recto, provinha da porta; um guinava à esquerda, o outro à direita, ao sopé do morro; mas o caminho estreito seguia directamente morro acima (e o nome da subida pela encosta do morro se chama Dificuldade). Cristão caminhou até a fonte e bebeu um pouco d'água para refrescar-se; logo depois começou a subir o morro, dizendo:
Embora alto, pretendo, sim, subir este morro;
Não, a dificuldade não me deterá. Eu corro,Pois vejo que passa aqui o caminho da vida.Animo, coração; não tema nem esmoreça na subida.Melhor, mesmo difícil, é tomar o caminho certo;
Pois o errado, embora fácil, leva à perdição do deserto.
Os outros dois homens também chegaram ao sopé do morro. Mas quando viram que a subida era íngreme e longa e que havia dois outros caminhos a tomar e supondo também que esses dois caminhos podiam se encontrar, do outro lado do morro, com aquele que Cristão tomara, resolveram então seguir essas trilhas incertas. Ora, o nome de uma delas era Perigo e a outra se chamava Destruição. Assim, um deles tomou o caminho chamado Perigo, que o levou até uma grande mata; e o outro seguiu directamente o caminho rumo à Destruição, que o levou a uma vasta região repleta de montanhas sombrias, onde tropeçou e caiu, para não mais se erguer.
Procurei então Cristão com o olhar, para vê-lo subindo o morro. Percebi que, se antes corria, passara a caminhar e depois a escalar apoiado nas mãos e nos joelhos, tão íngreme era a subida. Ora, mais ou menos a meio caminho do cume havia um caramanchão aprazível3 feito pelo Senhor do morro para refrigério dos exaustos viajantes.
Chegando ali, Cristão sentou-se para descansar. Tirou o rolo que guardara junto ao peito e leu para consolar-se. Passou também a examinar mais detidamente a capa ou veste que recebera diante da cruz, deleitando-se assim um pouco. Afinal se deixou vencer pelo cansaço e cochilou, logo caindo em sono profundo, o que o deteve ali até quase a noite. Durante o sono o rolo lhe caiu da mão4. Mas estando ainda adormecido, alguém delese aproximou e o despertou, dizendo:
- "Vai ter com a formiga, ó preguiçoso, considera os seus caminhos e sê sábio." (Pv.6:6]
Diante disso Cristão, súbito, retomou a subida, apressando-se pelo caminho até chegar ao cume do morro.
Chegando afinal ao cume, dois homens vieram correndo ao seu encontro; um deles se chamava Timorato, o outro, Desconfiança. Cristão disse a eles:
- Senhores, por que estão correndo na direcção errada?
Timorato disse que estava indo para a Cidade de Sião e que subira até aquele lugar difícil.
- Mas — continuou — quanto mais você avança, mais perigo encontra e por isso estamos voltando.
- Isso mesmo — disse Desconfiança — pois bem à nossa frente, no meio do caminho, vimos dois leões deitados. Não sabemos se estavam dormindo ou despertos; só pensávamos que, se chegássemos mais perto, eles imediatamente nos iriam estraçalhar.
- Vocês me deixam com medo — disse Cristão — mas para onde devo fugir em busca de refúgio? Se voltar à minha terra, sei que ela está reservada para o fogo e o enxofre; e ali certamente morrerei. Se conseguir chegar à Cidade Celestial, tenho certeza de que lá estarei seguro. Tenho de arriscar: voltar é morte certa, mas avançar é o medo da morte e a vida eterna jaz além. Por isso vou prosseguir.
Assim Desconfiança e Timorato desceram o morro correndo e Cristão seguiu caminho. Mas ponderando novamente o que ouvira dos homens, apalpou o peito em busca do rolo, para ler e confortar-se. Apalpando, porém, não o encontrou. Então Cristão se viu em grande angústia, sem saber o que fazer, pois desejava aquilo que costumava aliviá-lo e que seria também seu passe para a Cidade Celestial.
Bastante confuso, não sabia que rumo tomar. Lembrou-se, por fim, de que dormira debaixo do caramanchão na encosta do morro e caindo de joelhos pediu a Deus perdão pelo seu acto insano e depois voltou para procurar o rolo. Mas nesse caminho de volta, quanto pesar não trazia no peito Cristão? Por vezes suspirava, por vezes chorava e repetidamente se repreendia por ter sido insensato a ponto de adormecer no lugar que foi feito só para breve descanso do viajante.
Voltou, assim, tomando o cuidado de esquadrinhar o caminho com os olhos, de um lado e de outro, na esperança de achar o rolo que tantas vezes lhe servira de consolo na jornada. Desceu até novamente enxergar o caramanchão, onde sentara e dormira, mas a visão renovou-lhe o pesar, trazendo-lhe à mente, com força redobrada, a insensatez de ter adormecido.
Descia assim lamentando aquele sono pecaminoso, e dizia: "Ah, desventurado homem que sou (Rm.7:24) por ter dormido durante o dia! Por ter dormido em meio à dificuldade! Por ter cedido assim ao desejo da carne, por ter usado o descanso para aliviar a carne, quando o Senhor do morro o fizera somente para alívio do espírito dos peregrinos! Quantos passos não dei em vão! (O mesmo aconteceu aos israelitas por causa do seu pecado, pois foram enviados de volta pelo caminho do mar Vermelho.)
Tenho agora de trilhar esse caminho com pesar, sendo que poderia trilhá-lo com alegria, não fora esse sono pecaminoso. Quanto já não poderia ter avançado no caminho em todo esse tempo! Tenho de repisar os mesmos passos três vezes, caminho que podia ter trilhado uma só vez. Sim, agora é provável também que a noite me apanhe, pois o dia está quase no fim. Ah, quem dera não ter dormido!"
Afinal alcançou novamente o caramanchão, onde por algum tempo ficou sentado chorando, mas afinal (como ansiava Cristão), olhando pesarosamente debaixo do banco, ali enxergou o rolo, o qual com afã e tremor logo pegou, guardando-o novamente junto ao peito. Quem saberia dizer quanta alegria não sentia esse homem por recuperar o rolo! Pois era certeza de vida e garantia de aceitação no desejado céu. Assim, guardou-o junto ao peito, deu graças a Deus por ter ele guiado seu olhar ao lugar onde estava e com alegria e lágrimas retomou a jornada.
Mas, ah! Com que ligeireza não subiu o caminho até o cume! Porém, antes de lá chegar, o sol já se pusera, e isso o fez lembrar a futilidade do seu sono e assim novamente se pôs a condoer-se. "Ah, sono pecaminoso! Por sua causa, então, a noite me surpreende no meio da jornada! Tenho de prosseguir sem o sol, as trevas devem cobrir os meus passos e ouvirei os lúgubres ruídos das criaturas da noite – tudo por causa desse sono pecaminoso!"
Agora também se lembrava da história que Desconfiança e Timorato lhe haviam contado, o quanto se apavoraram ao ver os leões. Então novamente pensou
Cristão consigo: "Esses animais saem à noite em busca das presas, e se me encontrarem no escuro, como poderei escapar? Como evitar ser estraçalhado por eles?"
Assim seguiu seu caminho, mas enquanto lamentava seu deplorável deslize, ergueu os olhos e eis que diante dele, bem ao lado do caminho, erguia-se um palácio muito imponente e seu nome era Belo.

Capítulo 8

CRISTÃO ENCONTRA OS LEÕES E CHEGA AO PALÁCIO BELO


Em meu sonho, vi que ele apertou o passo e seguiu em frente, pensando em talvez arrumar pousada ali. Ora, logo adiante entrou por uma passagem bastante estreita e dali divisou, cerca de duzentos metros à frente, a casa do porteiro. Mas avançava com cuidado, observando atento o caminho e logo divisou dois leões. Agora, pensou consigo, vejo os perigos que fizeram Desconfiança e Timorato voltar por onde vieram. (Os leões estavam acorrentados, mas ele não via as correntes.)
Então teve medo e cogitou também ele voltar como os outros dois, pois acreditava piamente que a morte o esperava adiante. Mas o porteiro, que se chamava Vigilante1 percebendo que Cristão estacara, como se quisesse voltar, gritou-lhe dizendo:
- É sua força assim tão pouca? Não tema os leões, pois estão acorrentados e foram colocados aqui para testar a fé dos que a têm e para revelar aqueles que não a têm. Mantenha-se no meio do caminho e nada sofrerá.
Vi então que ele avançava, tremendo de medo dos leões, mas bem atento às orientações do porteiro. Ouviu o rugido das feras, mas elas não o tocaram. Então bateu palmas e seguiu adiante até alcançar o portão onde estava o porteiro. Disse Cristão:
- Senhor, que casa é esta? Posso passar a noite aqui?
- Esta casa foi construída pelo Senhor do morro, e ele a ergueu para alívio e segurança dos peregrinos - respondeu o porteiro, que também lhe perguntou de onde vinha e para onde ia.
cris. - Venho da Cidade da Destruição, e sigo para o monte Sião, mas como o sol já se pôs, pretendo, se puder, pousar esta noite aqui.
por. — Qual é o seu nome?
cris. — Meu nome é Cristão, mas antes eu me chamava Desditoso. Procedo da linhagem de Jafé, a quem Deus convenceu a habitar nas tendas de Sem.
por. — Mas por que é que você chegou tão tarde, já posto o sol?
cris. — Eu teria chegado mais cedo, mas, ah, como sou desventurado! Dormi debaixo do caramanchão ali na encosta do morro, mesmo assim, se fosse só isso, eu teria chegado aqui bem mais cedo, só que durante o sono perdi meu testemunho e sem ele vim até o cume do morro. Depois procurei-o e, não o encontrando, vi-me forçado, com pesar no coração, a voltar ao lugar onde dormi e ali o encontrei. Por isso só agora chego.
por. - Bom, vou chamar uma das virgens da casa e ela, caso se agrade da sua conversa, o levará ao resto da família, segundo as regras da casa. — E o porteiro Vigilante tocou um sino. Logo depois surgiu à porta da casa uma donzela linda e séria, de nome Discrição, perguntando por que fora chamada.
- Este homem vem da Cidade da Destruição e segue rumo ao monte Sião, mas está exausto e, surpreendido pela noite, pediu-me pouso. Disse-lhe, então, que a chamaria e que, depois de conversar com ele, você faria o que lhe parecesse melhor, segundo a lei da casa.
Então ela perguntou a Cristão de onde vinha e para onde ia e ele lhe respondeu. Perguntou-lhe também como entrara no caminho e ele lhe respondeu. Depois ela quis saber o que vira e com o que se deparara no caminho e ele lhe contou. Por fim, perguntou o nome dele, ao que respondeu:
- Cristão. Meu desejo de pousar aqui é ainda maior porque, pelo que percebo, este lugar foi construído pelo Senhor do morro para alívio e segurança dos peregrinos.
Ela então sorriu, mas aos olhos lhe brotavam lágrimas. Após breve pausa, disse:
- Vou chamar mais duas ou três pessoas da família. — E, correndo até a porta, chamou Prudência, Piedade e Caridade, que, depois de mais alguma conversa com ele, o aceitaram na família. Muitos dos que o receberam à porta da casa diziam:
- Entra, bendito do Senhor. Esta casa foi construída pelo Senhor do morro com o propósito de abrigar os peregrinos.
Ele então inclinou a cabeça, em respeito e os seguiu para dentro de casa. Já lá dentro, sentado, deram-lhe algo de beber e decidiram em consenso que, até estar pronta a ceia, um ou dois deles teriam uma conversa particular com Cristão, para melhor aproveitamento do tempo. Designaram Piedade, Prudência e Caridade para a tarefa, as quais assim começaram:
pied. - Meu bom Cristão, já que fomos tão amáveis com você, recebendo-o em nossa casa esta noite, que tal conversarmos sobre tudo o que lhe aconteceu na sua peregrinação? Creio que isso será proveitoso para todos nós.
cris. - E de muito bom grado que o faço e com satisfação vejo quanta bondade vocês têm para comigo.
pied. - Afinal o que o motivou a lançar-se à vida de peregrino?
cris. - Saí da minha terra natal em virtude de um alerta terrível que me soava nos ouvidos: que inevitável destruição pairava sobre mim se permanecesse naquele lugar.
pied. - Mas por que você saiu da sua terra justo por este caminho?
cris. - Foi vontade de Deus pois, quando os temores da destruição me atormentavam, não sabia aonde ir. Mas por acaso veio ter comigo um homem (quando eu me achava tremendo e chorando), de nome Evangelista, que me orientou rumo à porta estreita e assim me colocou no caminho que veio dar directamente nesta casa. Sem a ajuda dele, sei que jamais teria tomado esse caminho.
pied. - Mas você não passou pela casa de Intérprete?
cris. - Sim e lá vi coisas cuja lembrança permanecerá comigo enquanto eu viver, especialmente três delas: que Cristo, apesar de Satanás, conserva no coração sua obra da graça; que o homem pecou tanto que, para ele, não há esperança além da misericórdia divina; e também o relato daquele que pensou, sonhando, ter chegado o Dia do Juízo.
pied. - Por quê? Ele lhe contou seu sonho?
cris. - Sim e que sonho horrível, pensei. Deu-me uma dor no coração enquanto ele me contava o sonho, mas mesmo assim estou feliz por tê-lo ouvido.
pied. - E isso foi tudo o que você viu na casa de Intérprete?
cris. - Não, ele me levou para um lugar de onde me mostrou um palácio imponente, e lá dentro as pessoas trajavam ouro. Chegou por lá um homem ousado, que abriu caminho pêlos guardas armados que vigiavam a porta e tentavam impedi-lo. Esse homem foi convidado a entrar para receber glória eterna. Acho que essas coisas me arrebataram o coração. Eu bem poderia ter ficado na casa daquele bom homem um ano inteiro, mas sabia que tinha de seguir viagem.
pied. - E o que mais você viu pelo caminho?
cris. - O que vi? Bom, avancei um pouco mais e vi aquele que, como eu imaginava, pendia do madeiro, sangrando. A mera visão dele fez o fardo cair das costas (pois eu gemia debaixo de um fardo extenuante, mas então me vi livre dele). Para mim foi algo esquisito, pois jamais vira tal coisa antes. E... e enquanto eu estava ali de pé olhando para cima (porque não conseguia tirar os olhos dele), aproximaram-se de mim três Seres Resplandecentes. Um deles testificou que meus pecados estavam perdoados; outro me tirou os farrapos e deu-me esta capa bordada que você vê; e o terceiro gravou este sinal que você vê na minha testa e deu-me ainda este rolo selado.
- Dizendo isso, Cristão tirou o rolo de junto ao peito.
pied. - Mas você viu mais que isso, não foi?
cris. - As coisas que lhe contei foram as melhores. Mas vi também outras. Vi, por exemplo, ao passar, três homens – Simplório, Indolência e Presunção – adormecidos ao longo do caminho, com grilhões nos tornozelos. Mas pensa que eu consegui acordá-los? Vi também Formalista e Hipocrisia pularem o muro para seguir, segundo pretendiam, até Sião, mas logo se perderam, como de fato eu lhes havia dito, sem que me acreditassem. Porém, acima de tudo, tive de me esforçar muito para subir este morro e foi igualmente difícil passar ao lado das bocas dos leões. Na verdade, não fosse por esse bom homem, o porteiro que guarda a entrada, não sei se não teria decidido voltar. De qualquer modo agora agradeço a Deus por estar aqui e agradeço a vocês por terem me recebido.
Então Prudência achou conveniente fazer-lhe algumas perguntas e desejou que ele as respondesse.
prud. - Você às vezes não pensa na terra de onde veio?
cris. - Penso, mas com muita vergonha e ódio. Na verdade, se eu não tivesse tirado da cabeça aquela terra desde que de lá saí, poderia ter tido oportunidade de voltar. Mas agora desejo uma terra melhor, ou seja, terra celestial (Hb.11:15-16)
prud. - Você ainda não continua tolerando algumas das coisas com que estava familiarizado antes?
cris. - Continuo, mas muito contra a minha vontade, especialmente os pensamentos íntimos e carnais, com que todos os meus conterrâneos, como também eu mesmo, nos deleitávamos. Mas agora todas essas coisas me doem e, pudesse eu escolher meus próprios pensamentos, preferiria jamais tornar a pensar nelas. Porém, quando quero fazer o que é melhor, vejo que as piores coisas estão ainda em mim.
prud. - Você não acha que às vezes essas coisas parecem dominadas, mas outras vezes ainda lhe são embaraço?
cris. - Acho, mas isso é raro. Porém, quando me acontece, para mim são horas preciosas.
prud. - Você consegue se lembrar por que é que às vezes as contrariedades lhe parecem dominadas?
cris. - Sim. Quando penso no que vi diante da cruz, por exemplo; quando olho a minha capa bordada; também quando leio o rolo que trago junto ao peito; e ainda quando a ideia do lugar aonde vou me estimula.
prud. - E o que é que o faz tão desejoso de ir até monte Sião?
cris. - Bem, lá espero ver bem vivo aquele que, morto, vi pendurado na cruz; e ali espero livrar-me de todas essas coisas que até hoje estão em mim e que me são aborrecimento. Lá, dizem, não existe morte e lá viverei com a companhia que mais me agrada. Para dizer bem a verdade, só posso mesmo amá-lo, pois foi ele quem me aliviou o fardo. Estou cansado da enfermidade que trago cá dentro; prefiro estar onde não morrerei mais, ao lado daqueles que continuamente bradam: "Santo, Santo, Santo"
-. Então Caridade tomou a palavra e perguntou a Cristão: - Você tem família? E um homem casado?
cris. - Tenho mulher e quatro filhos pequenos.
car. - E por que não os trouxe consigo?
cris. - Ah, como gostaria de ter feito isso — disse entre lágrimas — Mas todos eles foram absolutamente contrários à minha peregrinação.
car. - Mas você deveria ter conversado com eles e se empenhado em mostrar-lhes o perigo de ficar para trás.
cris. - Pois foi o que eu fiz. Disse-lhes também que Deus me havia revelado a destruição da nossa cidade, mas eles pensaram que estava gracejando (Gn.19:14) e não me deram crédito.
car. - Mas porventura pediu a Deus que abençoasse o conselho que você lhes dava?
cris. - Pedi e isso com muito amor, pois acredite: minha mulher e meus pobres filhos me eram muito caros.
car. - Mas você lhes falou do pesar que sentia e do medo da destruição? Pois suponho que a destruição lhe era bastante visível, não?
cris. - Era e sempre mais. Talvez eles vissem também os temores no meu rosto, nas minhas lágrimas e também nos tremores que eu tinha por causa da apreensão diante do juízo que pairava sobre nossas cabeças. Nada disso, porém, foi suficiente para fazê-los vir comigo.
car. - Mas qual a razão que eles alegaram para não vir?
cris. - Bom, minha mulher tinha medo de perder este mundo e meus filhos se apegavam aos loucos prazeres da juventude. Assim, aquela por um motivo, estes por outros, eles todos me deixaram partir assim sozinho.
car. - Mas será que, com sua vida fútil, você não contrariou tudo o que, com palavras, usava para tentar convencê-los a acompanhá-lo?
cris. - Realmente a minha vida não é digna de elogios, pois tenho consciência das minhas muitas faltas. Aliás, sei também que o homem, pela sua conduta, pode logo derrubar aquilo que por argumentos ou persuasão tenta impor aos outros, para o próprio bem deles. Mas isto posso dizer: eu tomava todo o cuidado para não lhes dar motivo, por qualquer ato indecoroso, de ter aversão à peregrinação. Sim, e por isso mesmo eles me diziam que eu era rígido demais, que eu me privava de coisas (por causa deles) nas quais eles não viam mal nenhum. Não, acho que posso dizer que, se em mim viram algo que realmente os deteve, era a grande dor que me afligia ao pecar contra Deus ou fazer algum mal contra o meu próximo.
car. - De facto Caim odiava seu irmão por que suas próprias obras eram más e as de Abel, justas (1 João 3:12). Se sua mulher e filhos se ofenderam com você por isso, mostraram-se assim implacáveis diante do bem. Mas você libertou a sua alma (Ez.3:19) do sangue deles2.
Então vi no meu sonho que assim ficaram conversando até ficar pronta a ceia. E estando eles também prontos, sentaram-se à mesa. Ora, a mesa estava posta com belos pratos e vinho também muito fino; e toda a conversa durante a ceia foi sobre o Senhor do morro, a saber, sobre o que ele fizera e por que fez o que fez, e por que construíra aquela casa. E pelo que disseram, percebi que ele fora um grande guerreiro, que combatera e matara aquele que tinha o poder da morte (Hb.2:14) não sem que ele mesmo corresse grande risco, o que me fez amá-lo ainda mais.
Pois, como disseram eles, e como creio eu (disse Cristão), ele o fez com perda de muito sangue; mas o que espalha a glória da graça em tudo o que ele fez é o fato de tê-lo feito por puro amor pela sua terra. Aliás, alguns da casa disseram que o haviam visto e também conversado com ele depois da sua morte na cruz. Atestaram ter ouvido da sua própria boca que ele ama tanto os pobres peregrinos que, de leste a oeste, não se acha amor igual.
Além disso, deram como exemplo daquilo que afirmavam o seguinte: ele havia se despido da própria glória para isso fazer pêlos pobres; e disseram tê-lo ouvido falar e afirmar que não habitaria só na montanha de Sião. Disseram, ainda, que ele de muitos peregrinos fizera príncipes, embora por natureza tenham nascido mendigos e sua origem fosse o monturo (1 Sm.2:8; SI 113:7).
Assim conversaram até tarde da noite e, após orar pedindo a protecção do Senhor, foram afinal repousar. O peregrino, acomodaram-no num amplo quarto no andar de cima, cuja janela dava para o nascente. O nome do quarto era Paz, onde dormiu até o raiar do dia. Então acordou e cantou:
Onde estou agora? Será isso o zelo divinoO amor de Jesus por aquele que é peregrino?Tantas coisas dá! Até perdão ao réuQue habita já nas vizinhanças do próprio céu.
Então, de manhã, todos levantaram e, conversando, disseram-lhe que não partisse sem antes ver as raridades da casa. Primeiro levaram-no até a biblioteca, onde lhe mostraram documentos de grande antiguidade. Se bem me lembro do meu sonho, mostraram-lhe antes de tudo a ascendência do Senhor do morro, que era filho do Ancião de Dias e veio à existência por eterna geração. Ali também se achavam mais plenamente registrados os actos que ele executara, os nomes das muitas centenas que ele tomara para seu serviço e como ele os havia posto em moradas que jamais seriam destruídas, nem pela passagem dos dias nem pela degeneração da natureza.
Então leram para ele alguns dos actos meritórios que alguns dos seus servos haviam feito: como subjugaram reinos, executaram a justiça, alcançaram promessas, fecharam as bocas de leões, aplacaram a violência do fogo, escaparam ao fio da espada, da fraqueza extraíram força, agigantaram-se na luta e fizeram bater em retirada exércitos de estrangeiros (Hb.11:33-34).
Depois leram ainda noutro volume dos documentos do lugar um trecho em que se mostrava que o Senhor se dispõe a receber na sua graça todas as pessoas, mesmo aquelas que no passado tenham feito grande afronta à sua pessoa e aos seus caminhos. Ali também estavam diversas histórias de muitas outras coisas famosas, e de todas elas Cristão teve um vislumbre, de coisas antigas e modernas, além de profecias e predições de acontecimentos que seguramente se cumprirão, tanto para pavor e espanto dos inimigos quanto para consolo e alívio dos peregrinos.
No dia seguinte o levaram à armaria, onde lhe mostraram toda sorte de apetrechos que seu Senhor providenciara para os peregrinos: espada, escudo, capacete, couraça, toda oração e calçados que não se gastam. E ali havia o bastante para equipar tantos homens ao serviço do Senhor quanto as miríades de estrelas que há no céu.
Também lhe mostraram alguns dos objectos com que alguns dos seus servos haviam feito prodígios. Mostraram-lhe a vara de Moisés; o martelo e o cravo com que Jael matou Sísera; também os cântaros, as trombetas e as tochas com que Gideão fez bater em retirada os exércitos de Midiã. Então lhe mostraram a aguilhada de bois que Sangar usou para matar seiscentos homens. Ainda, a queixada com que Sansão fez tamanhas proezas. Mostraram-lhe, além disso, a funda e a pedra que Davi usou para matar Golias de Gate, e a espada também com que seu Senhor irá matar o homem de iniquidade, no dia em que há de erguer-se para o Juízo.
Apresentaram-lhe, ademais, muitas coisas excelentes e Cristão se admirou bastante com elas. Isso feito, já era hora de dormir.
Então vi no meu sonho que, de manhã, ele levantou decidido a seguir viagem, mas quiseram que ele ficasse até o dia seguinte, e disseram:
— Se o tempo estiver bom, vamos lhe mostrar as Montanhas Aprazíveis.
Era algo que, segundo disseram, lhe traria ainda mais ânimo, pois as montanhas ficavam mais perto do refúgio desejado do que o lugar onde estava então. Ele aceitou o convite e ficou.
Já alto o sol, levaram-no até o terraço da casa e lhe apontaram o sul e eis que, a grande distância, ele viu uma região montanhosa das mais lindas, embelezada com matas, vinhedos, frutas de todas as espécies, flores também, com riachos e fontes – tudo muito aprazível de olhar.
Cristão perguntou o nome daquela terra e lhe disseram que era a Terra de Emanuel, região à qual todos os peregrinos tinham livre acesso, tanto quanto o morro onde estavam. E quando você chegar lá, poderá ver o portão da Cidade Celestial, pois os pastores que moram ali vão mostrá-lo a você.
Ora, ele se lembrou então de que era hora de partir e todos concordaram.
- Mas primeiro – disseram – vamos novamente até a armaria.
E para lá se dirigiram e, chegando, o aparelharam da cabeça aos pés com apetrechos da mais alta qualidade e resistência, talvez para enfrentar os perigos do caminho.

Capítulo 9

CRISTÃO LUTA COM APOLION NO VALE DA HUMILHAÇÃO



Assim paramentado, caminhou com as amigas até o portão e ali perguntou ao porteiro se ele vira algum peregrino passar por ali.
- Vi sim — respondeu ele.
cris. - E o conheceu?
por. - Perguntei seu nome e ele me disse que se chamava Fiel.
cris. - Ah, eu o conheço. É da minha cidade. Vizinho meu. Vem do lugar onde nasci. Quanto você acha que ele já andou?
por. - A essa altura já deve ter descido o morro.
cris. - Que o Senhor esteja com você, então, bom porteiro e muito acrescente a todas as suas bênçãos, pela bondade que você teve para comigo.
E seguiu caminho. Discrição, Piedade, Caridade e Prudência o acompanharam até o sopé do morro. Foram caminhando juntos, repisando as conversas que tiveram, até o início da descida. E Cristão falou:
- Assim como foi difícil subir, também (até onde sei) é perigoso descer.
- É verdade – tornou Prudência – pois para o homem é penoso descer até o Vale da Humilhação, lá em baixo, sem escorregar pelo caminho. Portanto – disseram elas – vamos acompanhá-lo até lá.
Então ele começou a descer, mas com muito cuidado e ainda assim sofreu um ou dois escorregões. E vi no meu sonho que as amáveis companheiras (quando Cristão já descera até o sopé do morro) lhe deram um pedaço de pão, uma garrafa de vinho e um cacho de passas. E assim seguiu caminho.
No Vale da Humilhação, porém, o caminho se tornava difícil para Cristão. Pouco andara ainda quando divisou um demónio maligno vindo pelo campo em sua direcção. Seu nome era Apoliom (Ap.9:11). Cristão teve medo, sem saber se voltava ou continuava. Lembrou, então, que não possuía armadura nas costas, e se deu conta de que virar-lhe as costas talvez desse ao demónio a vantagem de feri-lo facilmente com seus dardos. Sendo assim, Cristão resolveu arriscar-se e continuou, pois, reflectiu ele, mesmo que só pensasse em salvar a própria pele, o melhor a fazer seria enfrentar.
Portanto avançou e Apoliom veio ter com ele. Ora, o monstro tinha aparência apavorante. Era todo coberto de escamas como um peixe (e essas escamas são seu orgulho), tinha asas de dragão, patas de urso, e do ventre lhe saíam fogo e fumaça e a boca era como a de um leão. Alcançando Cristão, encarou-o com olhar desdenhoso, e imediatamente passou a interrogá-lo:
apol. - De onde você vem e para onde vai?
cris. - Venho da Cidade da Destruição, lugar de todo o mal e me dirijo à Cidade de Sião.
apol. - Ah, vejo então que você é um dos meus súbditos, pois toda aquela terra é minha e dela sou príncipe e deus. Como então você foge do seu rei? Não fora a minha esperança de que você possa ainda me servir, agora mesmo o esmagaria no chão de um só golpe.
cris. - Nasci de facto nos seus domínios, mas seu serviço era duro e seu salário, insuficiente para a vida do homem, pois o salário do pecado é a morte (Rm.6:23). Portanto, alcançando a maturidade, fiz como outras pessoas sensatas fazem, procurando uma forma de emendar-me.
apol. - Príncipe nenhum perde assim tão fácil seus súbditos e eu também não pretendo perdê-lo. Mas se você está reclamando do seu serviço e do seu salário, quanto a isso fique tranquilo. Prometo dar-lhe aqui tudo o que de melhor haja na sua terra.
cris. - Mas já me comprometi com outro, com o Rei dos Príncipes, sendo assim como posso, em justiça, voltar contigo ?
apol. - Nisso, como diz o provérbio, você trocou o ruim pelo pior. Mas, dentre aqueles que se confessam servos dele, é comum haver deserções, pois logo voltam para mim. Se você fizer isso, tudo lhe sairá bem.
cris. - Mas já confiei a ele a minha fé e a ele jurei fidelidade, como então poderia voltar atrás sem ser enforcado por traição?
apol. - Você fez o mesmo comigo e no entanto me disponho a esquecer, se você voltar atrás.
cris. - O que lhe prometi o fiz na minha imaturidade; ademais, confio em que o Príncipe cuja bandeira agora defendo me irá absolver – sim – e perdoar também o que fiz na minha submissão a ti. Além disso, ó Apoliom destruidor, para dizer a verdade, gosto de servir a ele, do salário que ele paga, dos seus outros servos, do seu governo, da sua companhia e da sua terra. Gosto mais disso tudo do que das coisas que você me oferece. Portanto, desista de tentar convencer-me. Dele é que sou servo e a ele seguirei.
apol. - Pondere de novo, friamente, o que irá encontrar neste caminho que você está seguindo. Você sabe que a maioria dos servos dele tem triste fim, pois são transgressores contra mim e contra os meus caminhos. Quantos deles não sofreram morte vergonhosa! Além disso, você acha que servir a ele é melhor que servir a mim, mas ele jamais saiu do lugar de onde está para libertar das nossas mãos qualquer um dos que lhe servem. Quanto a mim, porém, como todo o mundo bem o sabe, quantas vezes já não libertei dele e dos seus, por força ou astúcia, aqueles que fielmente me servem; pois assim também o libertarei.
cris. - O fato de ele não libertá-los ainda tem por objectivo testar o seu amor, ver se até o final se manterão fiéis. Quanto ao triste fim que você diz lhes está reservado, isso para eles traz muita glória, pois, no presente, não esperam libertação; aguardam, sim, a glória vindoura e certamente a terão quando o seu Príncipe vier na sua glória e na glória dos anjos.
apol. - Você já foi infiel no seu serviço a ele. Como então espera receber dele salário?
cris. - E como, ó Apoliom, fui infiel a ele?
apol.- Você desfaleceu logo no início, quando quase se afogou no Abismo do Desânimo. Tomou caminhos errados para se livrar do fardo, quando devia ter tolerado até que seu Príncipe lhe aliviasse a carga. Você dormiu em pecado e perdeu coisa muito preciosa. Diante dos leões, quase se deixou convencer a voltar e, ao falar da sua jornada e do que ouviu e viu, no íntimo, você deseja vanglória em tudo o que diz e faz.
cris. - Tudo isso é verdade e muito mais que você não mencionou, mas o Príncipe a quem sirvo e honro é misericordioso, sempre pronto a perdoar. Além disso, essas fraquezas já me possuíam na sua terra, pois foi lá que as contraí e debaixo delas tenho sofrido e lamentado. Mas assim mesmo alcancei o perdão do meu Príncipe
Então Apoliom rebentou em terrível fúria, dizendo:
- Sou inimigo desse Príncipe. Odeio sua pessoa, suas leis e seu povo. Vim com o propósito de deter você.
cris. - Apoliom, tome cuidado com o que pensa fazer, pois estou na estrada do Rei, caminho da santidade. Trate de tomar cuidado, portanto.
Apoliom então, agigantando-se, ocupou o caminho de um lado a outro e disse:
- Não tenho um pingo de medo disso. Prepare-se para morrer, pois juro por meu antro infernal que você não seguirá adiante. Aqui tomarei sua alma.
E, dizendo isso, atirou um dardo flamejante contra o peito de Cristão. Este, porém, defendeu-se com o escudo que trazia no braço, driblando o perigo. Cristão avançou, pois viu que era o momento de provocá-lo. Apoliom também atacou, lançando dardos às saraivadas. Cristão, mesmo tudo fazendo para evitar as setas, feriu-se na cabeça, na mão e no pé e diante disso, recuou.
Apoliom se manteve em feroz ataque, mas Cristão de novo tomou coragem para resistir o mais bravamente possível. O combate, assim acirrado, perdurou por metade do dia, até estar Cristão já quase vencido. Pois há de convir comigo o leitor que Cristão, em virtude dos ferimentos, ficava cada vez mais fraco.
Apoliom, então, antevendo a oportunidade, buscou aproximar-se mais de Cristão e, em luta corpo a corpo, jogou-o no chão. Tão terrível foi o golpe que a espada de Cristão voou longe.
- Vou matá-lo agora — berrou Apoliom, sufocando-o até quase a morte, deixando-o já sem esperança de vida.
Mas quando o demónio se preparava para o golpe fatal, para dar cabo enfim desse bom homem, Cristão, por graça de Deus, estendeu a mão à espada e a agarrou, dizendo:
- "Não te alegres a meu respeito", ó inimigo meu! "Ainda que eu tenha caído, levantar-me-ei" (Mq.7:8). Desferiu então um golpe fatal, fazendo recuar o demónio, como que ferido de morte. Cristão, apercebendo-se disso, atacou-o novamente, bradando:
- "Em todas estas coisas, porém, somos mais que vencedores, por meio daquele que nos amou" (Rm.8:37). Diante disso, Apoliom abriu suas asas de dragão e afastou-se ligeiro e Cristão2 não mais o viu.
Nesse combate, homem nenhum jamais poderia imaginar, a menos que tivesse ele mesmo visto e ouvido como eu, quão horrivelmente Apoliom berrava e rugia durante toda a luta. Falava ele como dragão e, do outro lado, quantos não foram os suspiros e gemidos que brotavam do peito de Cristão! Durante esse tempo todo, não percebi no seu rosto nem um só olhar agradável, senão ao perceber que ferira Apoliom com sua espada de dois gumes. Então afinal sorriu e ergueu os olhos, mas foi a visão mais apavorante que jamais vi.
Assim, finda a batalha, Cristão falou:
- Dou graças aqui àquele que me libertou da boca do leão (2 Tm.4:17), àquele que me auxiliou contra Apoliom. - E disse mais:
O grande Belzebu, chefe e rei desse demónio,Tramou minha ruína; para esse fim medonhoBem equipado enviou-o e com fúria infernalContra mim se atirou em assalto visceral.Mas Miguel, bendito seja, me socorreu,E pela espada fiz debandar o sandeu.Que a Ele eu louve e agradeça eternamenteE sempre bendiga seu santo nome clemente.
E diante dele surgiu uma mão misteriosa que lhe trazia algumas folhas da Árvore da Vida. Cristão as tomou e com elas tratou as feridas que ganhara na batalha, e imediatamente curou-se. Também sentou-se ali para comer do pão e beber do vinho que recebera pouco antes. Assim revigorado, retomou a jornada, espada à mão, dizendo: "Não sei se outro inimigo não está por perto". Mas não enfrentou nenhum outro ataque de Apoliom em todo o vale.