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sábado, maio 13, 2006

Capítulo 13

PERSEGUIÇÃO E MORTE NA FEIRA DA VAIDADE.

Quando quase chegavam ao fim do deserto, Fiel, ao olhar para trás, divisou alguém que os seguia, e o reconheceu.
- Olhe! - disse Fiel ao seu irmão. - Veja quem vem lá. Cristão olhou e disse:
- É o meu bom amigo Evangelista.
- É e também grande amigo meu – disse Fiel. – Foi ele quem me indicou o caminho até a porta. Assim Evangelista os alcançou, saudando-os.
evan. - A paz esteja com vocês, amados e paz também aos seus auxiliadores.
cris. - Bem-vindo, muito bem-vindo, meu bom Evangelista. A visão do seu rosto me faz lembrar a sua bondade, o seu incansável esforço pelo meu bem-estar eterno.
fiel - Mil vezes seja bem-vindo. Como nos é desejável, a nós pobres peregrinos, a sua companhia, caríssimo Evangelista!
evan. - Como têm passado vocês, meus amigos, desde quando nos separamos? O que encontraram pelo caminho, e como vêm se saindo?
Então Cristão e Fiel lhe contaram todas as coisas que lhes aconteceram pelo caminho e como e com que dificuldade chegaram àquele local.
evan. - Muito contente estou, não por vocês terem enfrentado provações, mas por terem se saído vitoriosos e porque (apesar das muitas fraquezas) continuaram no caminho até este dia. Repito: muito contente estou por causa disso e não só por vocês mas também por mim mesmo. Pois semeei e vocês colheram e vem o dia em que tanto o que semeou quanto os que colheram juntos se alegrarão (João 4:36). Isto quer dizer que, se vocês perseverarem e não desfalecerem, no tempo devido colherão (Gl.6:9).
- A coroa está diante de vocês – disse-lhes Evangelista – e é coroa incorruptível. Corram portanto para alcançá-la (1 Cor.9:24-27). Alguns há que partiram em busca dessa coroa, mas, depois de muito avançarem rumo a ela, outro veio e a tomou deles. Agarrem, portanto, o que vocês têm; não deixem que homem nenhum tome a vossa coroa (Ap.3:11). Vocês não estão ainda fora do alcance dos disparos do Diabo. Na sua luta contra o pecado, ainda não resistiram até ao sangue.
- Mantenham o Reino sempre diante de vocês – advertiu-os Evangelista – e creiam firmemente nas coisas invisíveis. Não deixem que as coisas deste mundo se arraiguem em vocês e, acima de tudo, vigiem bem o seu coração e as suas paixões, pois são enganadoras mais que todas as coisas e desesperadamente iníquas. Que seu rosto seja como a rocha. Vocês têm ao seu lado todo o poder no céu e na terra.
Cristão agradeceu-lhe a exortação, mas disse ainda que gostariam que ele lhes falasse mais para proveito deles, durante o resto do dia e o mais possível. Eles bem sabiam que Evangelista era profeta e poderia falar de coisas que talvez viesse lhes a acontecer e de como poderiam resistir a essas coisas para superá-las. Fiel também reforçou o pedido. Então Evangelista tomou a palavra e disse:
evan. - Meus filhos, vocês já ouviram nas palavras verdadeiras do Evangelho que é preciso passar por muitas tribulações para entrar no Reino dos Céus. E também que em cada cidade vocês hão de encontrar grilhões e aflições, não devendo esperar portanto seguir na peregrinação sem tais coisas, de um modo ou de outro. Vocês já enfrentaram algo da verdade desses testemunhos, e adiante mais disso lhes virá.
- Agora, como podem ver – continuou Evangelista, estão quase no fim deste deserto e portanto logo chegarão a uma cidade. Nela vocês serão duramente atormentados pêlos inimigos, que muito se esforçarão por matá-los. Podem estar certos de que um de vocês, ou ambos, precisará selar o testemunho que sustentam com o próprio sangue. Sejam fiéis, no entanto, até a morte, que o Rei lhes dará a coroa da vida.
- Aquele que há de morrer ali – concluiu Evangelista e de morte inatural e provavelmente entre muitas dores, terá porém quinhão melhor que seu companheiro, não só porque chegará mais cedo à Cidade Celestial, mas porque será poupado de muitas angústias que o outro encontrará no restante da jornada. Quando, porém, chegarem à cidade e se cumprir o que acabei de lhes dizer, então lembrem-se desse seu amigo e procedam como homens e não deixem de conservar a vossa alma para Deus, vosso fiel Criador.
Então vi no meu sonho que, ao sair do deserto, logo viram à frente uma cidade e seu nome era Vaidade. Lá acontece uma feira chamada Feira das Vaidades, pois a cidade é mais frívola que a vaidade e também porque tudo o que se vende ali ou que ali chega é Vaidade. Como diz o sábio: "Tudo o que vem é vaidade".
Essa feira não é negócio novo, mas muito antigo; vejam só a origem dela.
Quase cinco mil anos atrás, já havia peregrinos caminhando rumo à Cidade Celestial, como hoje essas duas pessoas honestas. Belzebu, Apoliom e Legião, com seus companheiros, percebendo que o caminho dos peregrinos rumo à cidade sempre passava por este local chamado Vaidade, planejaram então estabelecer ali uma feira, em que se vendesse toda sorte de vaidades e que durasse o ano inteiro.
Logo, nessa feira vende-se todo tipo de mercadoria, como casas, terras, negócios, lugares, honrarias, títulos, países, reinos, paixões, prazeres e deleites de toda espécie, como também meretrizes, cafetinas, esposas, maridos, filhos, senhores, servos, vidas, sangue, corpos, almas, prata, ouro, pérolas, pedras preciosas e tudo o mais.
E, além disso, nessa feira sempre se vêem mágicas, engodos, jogos, brincadeiras, palhaços, mímicos, ilusionistas e velhacos de toda sorte. Ali também se vêem e sem motivo, furtos, assassinatos, adultérios, perjúrios, tudo bem tingido de vermelho-sangue.
Como em outras feiras de menor pujança, há várias vielas e ruas de nomes característicos, onde se vendem tais e quais mercadorias. Assim, igualmente, os produtos de certos países e reinos são vendidos em locais, vielas e ruas determinadas. Há, por exemplo, a rua Britânica, a viela Francesa, a via Italiana, a travessa Espanhola, a alameda Alemã, onde se vendem vários tipos de vaidade.
Mas, como em outras feiras, certo produto funciona como carro-chefe de todo o negócio. Nessa, os artigos de Roma são-fartamente divulgados. Somente a nação inglesa, ao lado de algumas outras, desenvolveu repulsa pela agitação.
Ora, como já disse, o caminho até a Cidade Celestial passa justamente por esse lugar onde acontece essa feira devassa e aquele que vai à cidade, mas não passa por tal lugar, deve necessariamente "sair do mundo" (1 Cor. 5:10). O próprio Príncipe dos Príncipes, quando aqui esteve, passou por esta cidade rumo à sua própria terra e isso também em dia de feira. Sim, e acho até que foi Belzebu, senhor e líder da feira, que o convidou a comprar das suas vaidades.
Se Cristo, ao passar pela cidade, tivesse adorado Belzebu, este o teria feito senhor da feira. Sim, por ser ele pessoa de dignidade, Belzebu o levou de rua em rua, mostrando-lhe em pouco tempo todos os reinos do mundo para, se possível, incitar o Bem-Aventurado a barganhar e comprar algumas das suas vaidades (Mt 4:8-9; Lc 4:5-7). Mas ele não se interessou nem um pouco pêlos artigos e assim deixou a cidade sem gastar sequer um centavo com essas vaidades. A feira, portanto, é coisa antiga, de longa data e extremamente ampla e variada.
Esses peregrinos, como já mencionei, precisavam atravessar a feira. E assim fizeram. Mas eis que ao entrar na feira todas as pessoas, da feira como da própria cidade, lhes abriram caminho, formando um rebuliço em torno deles, por diversas razões:
Primeiro, os peregrinos trajavam vestes muito diferentes daquelas usadas por qualquer um dos que negociava na feira. Por conseguinte, as pessoas da feira não tiravam os olhos deles. Alguns diziam que eram idiotas, outros que eram lunáticos mendicantes, outros ainda, bárbaros estrangeiros.
Segundo, assim como admiraram os trajes dos dois homens, também se espantaram com o que diziam, pois, poucos conseguiam entender o que falavam. Eles naturalmente falavam a língua de Canaã, mas os que tocavam a feira eram homens deste mundo. Portanto, de um lado a outro da feira, pareciam bárbaros uns para os outros.
Terceiro e algo que não provocou a menor admiração nos mercadores, os peregrinos mal chegavam a reparar nos artigos à venda; nem sequer se dignavam olhar as mercadorias e, se os chamavam para oferecer algum produto, os dois tapavam os ouvidos, bradavam:
"Desvia os meus olhos para que não vejam a vaidade" (SI.119:37) e olhavam para o alto, sugerindo que seus negócios estavam lá no céu.
Certo homem, observando o comportamento dos dois, disse zombeteiro: "O que vocês vão comprar?". Mas eles, lançando-lhe olhar grave, disseram: "Compramos a verdade" (Pv.23:23). Isso serviu de motivo para que desprezassem ainda mais os peregrinos. Alguns escarneciam, outros ridicularizavam, outros repreendiam e alguns arrebanhavam gente para espancá-los.
Afinal a coisa se transformou em tumulto e grande rebuliço na feira, desembocando em total desordem. Logo a notícia chegou ao maioral da feira, que rapidamente desceu e designou alguns dos seus amigos maisfiéis para inquirir os dois homens, por conta de quem a feira praticamente parara.
Os peregrinos, então, foram levados à corte. Os que se postaram diante deles lhes perguntaram de onde vinham, para onde iam e o que ali faziam trajando vestes tão bizarras. Os dois lhes disseram que eram peregrinos e forasteiros neste mundo e que seguiam para a sua própria terra, que era a Jerusalém celeste, e que não haviam dado nenhum motivo aos homens da cidade, nem aos mercadores, para tratá-los assim e impedir a sua jornada. Excepto que, quando alguém lhes perguntou o que comprariam, responderam que comprariam a verdade. Mas os que foram designados para inquiri-los não acreditaram senão que eles eram lunáticos ou loucos mendicantes, ou então gente que viera à feira para instaurar a desordem. Assim os agarraram e espancaram e os emporcalharam de imundícies, jogando-os depois numa cela, para que servissem de espectáculo para todo o povo da feira. E ali ficaram por algum tempo e eram alvo de escárnio, malícia ou vingança de todos. E o maioral da feira se ria de tudo o que lhes acontecia.
Os homens, porém, foram pacientes e não retribuíam insulto com insulto, mas, pelo contrário, abençoavam e retribuíam o mal com boas palavras e as injúrias com bondade. Diante disso, alguns homens da feira, mais perspicazes e menos preconceituosos que os outros, passaram a repreender e censurar os mais vis pelas contínuas violências perpetradas contra os peregrinos. Eles, porém, irritados, voltaram-se contra seus repreensores e, considerando-os desprezíveis como os homens da cela e acusando-os de cumplicidade, ameaçavam prendê-los junto com os peregrinos, fazendo-os passar pêlos mesmos infortúnios.
Os outros retrucaram que, pelo que podiam ver, os dois homens eram calados e sóbrios e não queriam fazer mal a ninguém e que na feira havia muitos mercadores mais merecedores da cela e mesmo do pelourinho, do que os peregrinos que eles afligiam.
Assim, após muita discussão entre os dois partidos (enquanto os peregrinos se portavam muito sábia e sobriamente perante eles), trocaram as palavras pela força bruta e muitos saíram feridos. Então os dois peregrinos foram novamente levados à presença dos seus inquiridores, acusados de provocar novo tumulto na feira. E foram cruelmente açoitados e, agrilhoados, desfilaram pela feira como exemplo e terror para os outros, para que ninguém mais os defendesse nem se unisse a eles.
Cristão e Fiel, no entanto, se comportaram ainda mais sabiamente e aceitaram a ignomínia e a vergonha que lhes era lançada ao rosto com tanta mansidão e paciência que conquistaram para a sua causa vários homens da feira (embora bem poucos esses em comparação com os outros). Isso enfureceu ainda mais o outro partido, que então concluiu ser a morte dos dois a única saída. Assim, argumentaram que nem a cela nem os grilhões serviam mais e que mereciam a morte pela violência que provocaram e por terem iludido os homens da feira.
Foram mandados de volta à cela, até que se expedisse nova ordem a respeito dos dois. E, no cárcere, ainda suportavam o suplício do tronco.
Ali novamente se lembraram do que ouviram do seu fiel amigo Evangelista e sentiram-se ainda mais confirmados no seu caminho e nos seus padecimentos por aquilo que lhes dissera que ocorreria. Também se consolavam um ao outro, ponderando que aquele cujo quinhão fosse a dor, esse teria a melhor recompensa; assim cada um dos dois, secretamente, desejava que fosse ele o escolhido. Porém, ambos se colocavam à sábia mercê daquele que rege todas as coisas e, bem conformados, aceitavam a miséria em que se achavam, até que as coisas tomassem novo rumo.
Então, no tempo oportuno, levaram-nos a julgamento para que fossem condenados. Chegada a hora, foram apresentados perante seus inimigos e acusados; o juiz se chamava Odio-ao-Bem. A acusação era essencialmente a mesma para os dois e, embora variasse ligeiramente na forma, o conteúdo era o seguinte:
"Eram inimigos e perturbadores dos negócios. Haviam provocado tumulto e divisões na cidade e arrebanharam um partido para suas perigosíssimas opiniões, em desrespeito à lei do príncipe."
Então Fiel pediu a palavra e disse que só se insurgiu contra o que antes se insurgira contra o sublime dos sublimes. E disse:
- Quanto aos distúrbios, não os provoquei, sendo eu homem de paz. O grupo que tomou nosso partido o fez por enxergar em nós a verdade e a inocência e nada mais fizeram que trocar o pior pelo melhor. Quanto ao rei de que os senhores falam, sendo ele Belzebu, inimigo de nosso Senhor, eu o desafio, ele e todos os seus anjos.
Então convocaram à frente os homens escolhidos para testemunhar pelo senhor, o rei, contra o prisioneiro. Surgiram três testemunhas, a saber, Inveja, Superstição e Bajulação. As três foram interrogadas, perguntando-se-lhes se conheciam o prisioneiro presente no tribunal e o que tinham a dizer a favor de seu senhor, o rei e contra Fiel.
Primeiro adiantou-se Inveja, dizendo:
- Meritíssimo, já conheço este homem há muito tempo e atesto sob juramento perante esta respeitada corte que ele é...
Juiz – Espere, que antes preste juramento. – Então o fizeram jurar. E novamente a testemunha tomou a palavra:
- Meritíssimo, este homem, apesar do seu nome plausível, é um dos homens mais vis da nossa terra, pois não respeita príncipe nem povo, lei nem costume, mas faz tudo o que pode para conquistar todos os homens com algumas das suas ideias desleais, que ele em geral denomina princípios de fé e santidade. E, em especial, eu mesmo o ouvi certa feita afirmar que o cristianismo e os costumes da nossa cidade de Vaidade eram diametralmente opostos e não se podiam conciliar. Por tais palavras, meritíssimo, ele não apenas condena de uma só vez todos os nossos louváveis actos, mas também nos condena a nós, que os realizamos.
Juiz - Você tem algo mais a dizer?
inveja - Meritíssimo, eu poderia dizer ainda muito mais, mas não quero entediar a corte. Porém, se necessário for, depois que os outros cavalheiros tiverem apresentado as suas provas, caso ainda falte algum elemento para condená-lo, poderei então acrescentar mais coisas ao meu testemunho.
Então a testemunha recebeu ordens de aguardar. Acto contínuo, convocaram Superstição e o mandaram olhar para o prisioneiro. Perguntaram-lhe também o que poderia dizer pelo senhor seu rei contra o réu. Assim, depois de prestar juramento, a segunda testemunha tomou a palavra:
super. - Meritíssimo, não tenho grande familiaridade com este homem e longe de mim conhecê-lo mais a fundo. Contudo, isto sei: que se trata de homem altamente pernicioso, coisa que deduzi da conversa que outro dia travei com ele nesta cidade. Conversando então com este homem, o ouvi dizer que nossa religião era nada, que por meio dela homem nenhum poderia jamais agradar a Deus. Bem sabe o meritíssimo juiz que dessas palavras necessariamente se infere que adoramos em vão, que chafurdamos portanto no pecado e que, consequentemente, seremos condenados. É isso o que tenho a dizer.
Depois foi a vez de Bajulação prestar juramento. A seguir lhe perguntaram o que sabia e diria, em nome de seu senhor, o rei, contra o prisioneiro presente no tribunal.
baj. — Meritíssimo e senhores presentes: este homem já conheço há muito tempo e o ouvi falar coisas que não se devem falar. Ele injuriou nosso nobre príncipe Belzebu e falou desdenhosamente dos seus honrados amigos, cujos nomes são Lorde Velho, Lorde Prazer Carnal, Lorde Lascivo, Lorde Desejo de Vanglória, meu velho Lorde Luxúria, o Barão Ganância e todo os outros nobres da corte. Ele disse ainda que se todos os homens acatassem a sua opinião, se possível fosse, nem sequer um desses nobres continuaria a viver nesta cidade. Além disso, ele não temeu sequer insultar o senhor, meritíssimo, hoje designado para ser seu juiz, chamando-o de impiedoso patife, além de muitos outros termos igualmente aviltantes, com que ele difamou a maior parte da aristocracia da nossa cidade.
Findo o falso testemunho de Bajulação, o juiz dirigiu-se ao prisioneiro, dizendo:
- Apóstata, herege e traidor! Você ouviu o que esses honestos cavalheiros testemunharam contra você?
fiel. - Posso porventura dizer algumas palavras em minha defesa?
Juiz - Calado, calado! Você não merece mais viver, mas sim morrer aqui mesmo no tribunal, mas, para que todos testemunhem nossa bondade para com você, ouçamos o que tem a dizer.
fiel. - Em primeiro lugar, digo então, em resposta ao que o Sr. Inveja falou, que jamais disse nada mais que isto: que qualquer regra, lei, costume ou povo nitidamente contrário à Palavra de Deus é diametralmente oposto ao cristianismo. Se algo de errado falei nisso, peço que me convençam do meu erro e aqui me prontifico perante os senhores a me retratar.
- Em segundo lugar — continuou —, quanto ao sr. Superstição e sua acusação contra mim, só disse eu o seguinte: que na adoração de Deus exige-se fé divina, mas não pode haver fé divina sem a divina revelação da vontade de Deus. Portanto tudo o que se insere no culto a Deus que não esteja de acordo com a revelação divina não se pode fazer senão por fé humana, fé que nada valerá para a vida eterna.
- Em terceiro lugar – finalizou Fiel – quanto ao que disse o Sr. Bajulação, afirmo (evitando os termos que, segundo se diz, eu teria usado, ou outros semelhantes) que o príncipe desta cidade, junto com todo o seu séquito, devidamente nomeado por este cavalheiro, deveriam estar antes no inferno do que nesta cidade ou neste país. Portanto que o Senhor tenha misericórdia de mim.
Então o juiz convocou o júri (que todo esse tempo esteve presente, para ouvir e observar):
- Cavalheiros do júri, os senhores vêem aqui este homem que provocou tão grande tumulto nesta cidade. Também ouviram o que esses respeitados senhores testemunharam contra ele; ouviram ainda sua resposta e confissão. Cabe agora à sua consciência enforcá-lo ou salvar a sua vida. Mas acho conveniente instruí-los antes acerca da nossa lei.
- Baixou-se um decreto nos dias de Faraó o Grande, servo de nosso príncipe – disse o juiz – determinando que, a fim de que os fiéis de uma religião contrária não se multiplicassem nem ficassem fortes demais diante dele, os homens da seita seriam atirados no rio. Baixou-se também um decreto nos tempos de Nabucodonosor, o Grande, outro dos seus servos, determinando que todo aquele que não se prostrasse para adorar a sua estátua de ouro seria atirado numa fornalha ardente.
Houve ainda outro decreto – argumentou o juiz – baixado nos dias de Dário, que determinava que todo aquele que, por algum tempo, invocasse qualquer deus que não o seu deveria ser lançado na cova de um leão.3 Ora, esse rebelde violou a essência dessas leis, e não só em pensamento (que não se deve abrigar), mas também em palavra e acto, o que não se deve de modo nenhum tolerar.
- Quanto ao caso de Faraó – concluiu o juiz – sua lei foi elaborada com o intuito de evitar a má conduta, não sendo ainda nenhum crime patente. Aqui, porém, temos um crime patente. Quanto ao segundo e ao terceiro decretos, os senhores vêem que Fiel contestou a nossa religião e, como acabou de confessar tal traição, merece nada menos que a morte.
Então saíram os membros do júri, cujos nomes eram Sr. Cego, Sr. Injustiça, Sr. Malicioso, Sr. Lascívia, Sr. Libertino, Sr. Imprudência, Sr. Pretensioso, Sr. Malevolência, Sr. Mentiroso, Sr. Crueldade, Sr. Ódio-à-Luz e Sr. Implacável. Cada um deles deu o seu veredicto privado contra o réu e depois unanimemente decidiram considerá-lo culpado perante o juiz. E assim pronunciou-se o Sr. Cego, o primeiro jurado:
- Vejo claramente que este homem é um herege.
- Despachemos este homem da terra – disse depois o Sr. Injustiça.
- Sim – concordou o Sr. Malicioso – pois não suporto sequer olhar para ele.
- Eu nem posso aturá-lo mais – falou o Sr. Lascívia.
- Nem eu – acordou o Sr. Libertino – pois ele viveria sempre condenando a minha conduta.
- Enforquem-no, enforquem-no – bradou o Sr. Imprudência.
- Mísero vira-lata! – vociferou o Sr. Pretensioso.
- Meu coração palpita contra ele – falou o Sr. Malevolência.
- É um velhaco – acusou o Sr. Mentiroso.
- Enforcá-lo é bom demais para ele – pronunciou-se o Sr. Crueldade.
- Vamos tirá-lo do caminho – sugeriu o sr. Odio-à-luz. – Por fim falou o Sr. Implacável:
- Se todo o mundo fosse meu, ainda assim não me conciliaria com ele, portanto importa que imediatamente o condenemos à pena de morte.
E assim se fez. Condenou-se imediatamente o réu a ser despachado do lugar onde estava àquele de onde viera e ali sofreria a morte mais cruel que se poderia conceber. Portanto o levaram para fora para executá-lo segundo a lei. Primeiro o açoitaram, depois o espancaram, a seguir lancetaram a sua carne com facas. Mais tarde ainda o apedrejaram, o espetaram com espadas e por fim queimaram-no na fogueira, até irar cinzas. Foi esse o fim de Fiel.
Ora, vi que por trás da multidão havia uma carruagem e uma parelha de cavalos esperando por Fiel, que (assim que seus Adversários o mataram) foi levado até lá e imediatamente transportado pelas nuvens, ao clangor de trombetas, caminho mais curto até o Portão Celestial.
Quanto a Cristão, este teve certo alívio e foi mandado de volta à prisão, onde permaneceu por determinado tempo. Mas aquele que tudo governa, detendo nas mãos o poder da sua fúria, quis que Cristão aproveitasse a oportunidade para fugir, retornando o caminho. E, no caminho, cantou:
Bom Fiel, fielmente confessaste teu Senhor.Com ele tu terás a bênção no esplendor,Mas os infiéis e seus vãos bacanaisLamentarão debaixo de dores infernais.Canta, Fiel, canta; e teu nome sobre viva:
Que depois da morte vem a vida efusiva.