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sábado, maio 13, 2006

Capítulo 15

CRISTÃO E ESPERANÇOSO SÃO APRISIONADOSPELO GIGANTE DESESPERO.

Vi então que seguiram o seu caminho, alcançando um rio aprazível, que o rei Davi chamou de "ribeiro de Deus" (SI.65:9) e João, de "rio da água da vida" (Ap.22:1). Agora o caminho corria justamente pela beira do rio.
Por ali, portanto, Cristão e seu companheiro caminhavam com grande prazer. Beberam também da água do rio, que era agradável e revigorante para seus espíritos exaustos. Além disso, nas duas margens desse rio havia árvores verdejantes que davam toda espécie de fruto e suas folhas tinham propriedades medicinais.Com o fruto, os dois muito se deleitaram e as folhas, as comiam para evitar náuseas e outras moléstias que acometem aqueles que aquecem o sangue pelas viagens.
Em cada margem do rio havia também um prado, curiosamente embelezado de lírios, que se mantinha verdejante o ano inteiro. Ali deitaram-se e dormiram, pois nesse lugar podiam descansar em segurança. Ao despertar, colheram novamente os frutos das árvores e outra vez beberam da água do rio, deitando-se de novo para dormir. E assim fizeram durante vários dias e noite. Então, cantaram:
Veja! Deslizam suave as águas límpidas como cristal
Que beiram o caminho até a cidade celestial;
O prado viçoso, o doce aroma fragrante,
Os regalos do fruto e da folha verdejante,
Quem chega a prová-los logo venderá tudo
Para ter para si esse campo, esse prado veludo.
Assim, quando se animaram a prosseguir (pois ainda não haviam chegado ao final da sua jornada), comeram e beberam, retomando viagem.
Ora, reparei no meu sonho que logo adiante o rio e o caminho se separavam. O facto muito desgostou os peregrinos, que nem por isso se desviaram do caminho. Agora a trilha, longe do rio, era acidentada e seus pés se achavam doloridos em razão de tanta viagem, motivo por que a alma dos peregrinos se abateu bastante (Nm.21:4). No íntimo desejavam vereda melhor.
Um pouco adiante havia do lado esquerdo da estrada um prado e uma escada que, passando por sobre o muro, levava até lá. O prado se chamava Atalho. Cristão disse ao companheiro:
- Já que esse prado fica rente ao nosso caminho, vamos passar para lá1. - Foi até a escada para olhar, e eis que havia uma trilha do outro lado do muro.
- É isso o que eu queria. Eis aqui um caminho mais fácil. Vamos, meu bom amigo, passemos para o outro lado.
esp. - Mas como, se essa trilha nos desviará do caminho?
cris. - Nada disso. Veja só: não acompanha exactamente o traçado do caminho?
Assim Esperançoso, convencido pelo colega, atravessou com ele o muro pela escada2. Já do outro lado, na nova trilha, viram que seus pés se aliviavam; logo depois, olhando para a frente, divisaram um homem caminhando como eles (e seu nome era Vã Confiança). Então o chamaram e lhe perguntaram para onde conduzia a trilha.
- Para o Portão Celestial.
- Viu? Não lhe disse? – Falou Cristão. – Com isso você vê que estamos certos.
Seguiram então e Vã Confiança foi à frente. Mas eis que veio a noite e noite de trevas tão espessas que os que seguiam atrás perderem de vista aquele que caminhava à frente3. Este por não enxergar o caminho acabou caindo num poço profundo, que de propósito fora aberto ali pelo príncipe daquelas terras para apanhar os tolos presunçosos. Na queda, o homem se espatifou no fundo do poço.
Ora, Cristão e seu companheiro ouviram o rumor da queda e, então, chamaram-no para ver o que havia acontecido. A única resposta que ouviram foi somente um gemido. Disse então Esperançoso:
- Onde estamos agora?
Seu companheiro se mantinha calado, suspeitando que se havia desviado do caminho. Começava também a chover. Logo trovões e relâmpagos sucediam-se. Tudo muito assustador. E a água subia rápido.Esperançoso então se lamentou, dizendo:
- Ah! Como pude me desviar do meu caminho!
cris. - Quem poderia imaginar que essa trilha nos desviaria do caminho?
esp. - Eu temia isso desde o começo, por isso alertei-o brandamente. Eu deveria ter falado com mais franqueza, mas você é mais velho do que eu.
cris. - Meu bom irmão, não se ofenda por favor. Sinto muito por tê-lo trazido para longe do caminho e colocado em perigo tão grande. Peço que me perdoe, amigo. Não o fiz movido por más intenções.
esp - Fique tranquilo, meu irmão, pois eu o perdoo. Creia-me: isso acabará redundando em nosso bem.
cris. - Fico feliz por ter comigo um amigo misericordioso. Mas não podemos ficar aqui parados. Vamos tentar voltar.
esp. - Sim, mas permita-me ir à frente, por favor.
cris. - Não, peço que você me deixe ir na frente, pois, se houver algum perigo, quero ser o primeiro a cair, afinal foi por minha causa que nós dois nos desviamos do caminho.
esp. - Não. Você não pode ir na frente, pois como você está com a mente perturbada, pode acabar saindo novamente do caminho.
Então ouviram uma voz animadora que dizia: "Que teu coração se volte à estrada, ao caminho mesmo por que passaste: volta" (Jr.31:21). Mas a essa altura as águas já iam bem altas e por esse motivo o caminho de volta se tomava bastante perigoso. (Então ponderei que é mais fácil sair do caminho quando se está nele do que nele entrar quando se está fora). Ainda assim se arriscaram a voltar. Estava, porém, tão escuro e as águas tão altas, que no percurso quase se afogaram umas nove ou dez vezes.
Apesar de todo o seu esforço, também não puderam alcançar novamente a escada na mesma noite. Por isso, parando debaixo de um modesto abrigo, ali sentaram-se para aguardar o raiar do dia, mas, exaustos, adormeceram.
Dali não estavam longe do local onde se erguia um castelo, chamado Castelo da Dúvida, cujo dono era o gigante Desespero. E era em terras dele que os peregrinos dormiam. Ora, o gigante, levantando de manhã bem cedo, foi caminhar pêlos campos e encontrou Cristão e Esperançoso adormecidos. Com voz severa e mal-humorada, acordou-os, perguntando-lhes de onde vinham e o que faziam em suas terras. Eles responderam que eram peregrinos e que haviam perdido o caminho. Falou então o gigante:
- Esta noite vocês invadiram a minha propriedade, vagando pelas minhas terras e deitando-se no meu chão. Agora vocês vêm comigo.
E foram forçados a acompanhá-lo, pois o gigante era mais forte do que os dois. Também pouco tinham eles a dizer, pois sabiam que haviam errado. O gigante, assim, os fez caminhar à frente, levando-os até o castelo. Lá trancafiou-os num calabouço muito sombrio, sórdido e malcheiroso ao espírito dos dois homens.
Ali então ficaram da manhã de quarta-feira até a noite de sábado, sem sequer migalha de pão ou gota de água, nem luz alguma ou alguém que lhes perguntasse como passavam. Estavam, portanto, em maus lençóis, longe de amigos e conhecidos. Nesse lugar, Cristão sentia redobrado pesar, pois fora por causa do seu precipitado afã que eles acabaram nessa situação aflitiva.
Ora, o gigante Desespero tinha uma mulher, de nome Desconfiança. Assim, ao ir deitar-se, contou à mulher o que fizera: que havia trazido dois prisioneiros, lançando-os no calabouço, pois haviam invadido a sua propriedade. Perguntou-lhe também o que deveria fazer com eles. Ela quis saber quem eram os homens, de onde vinham e para onde iam. E ele lhe disse. Então a mulher o aconselhou a, na manhã seguinte, espancá-los sem um pingo de misericórdia.
Assim, quando levantou de manhã, o gigante pegou uma terrível clava de macieira silvestre e desceu ao calabouço. Ali, primeiro os repreendeu colericamente, como se fossem cães, embora os dois jamais lhe houvessem dito uma só palavra agressiva. Depois caiu sobre eles, espancando-os violentamente, de modo tal que não puderam se ajudar, nem se erguer do chão.
Feito isso, o gigante saiu e os deixou condoendo-se da sua miséria e lamentando a sua aflição. Assim passaram todo o dia entre suspiros e amargos lamentos. Na noite seguinte, a mulher voltou a falar dos prisioneiros com seu marido e, ao saber que ainda estavam vivos, aconselhou-o a sugerir aos dois que se matassem.
O gigante, então, de manhã bem cedo, mal-humorado como antes, desceu até o calabouço e, percebendoque os homens estavam muito machucados com a sova que lhes aplicara no dia anterior, disse-lhes que, como era improvável que jamais saíssem daquele lugar, a única saída para eles era dar cabo da própria vida, fosse com faca, corda ou veneno.
- Pois – disse o gigante – por que vocês escolheriam a vida, vendo que ela é tão cheia de amargura?
Os homens, porém, pediram-lhe que os deixasse ir, lançando-lhes um olhar terrível, o gigante partiu para cima dos prisioneiros e certamente teria acabado com a vida dos dois, não tivera ele, naquele exacto momento, um dos seus ataques (pois às vezes, quando brilhava o sol, ele sofria esses ataques), perdendo temporariamente o controle das mãos. Assim, recuou e permitiu (como antes) que eles ponderassem o que fazer. Então os dois passaram a debater entre si se era melhor aceitar ou não o conselho do gigante:
cris. - Irmão, que faremos? A vida que agora vivemos é miserável. Confesso que não sei se é melhor viver assim ou morrer imediatamente. Minha alma prefere o estrangulamento à vida (Jó 7:15) e a sepultura é para mim mais fácil de suportar que este calabouço. Aceitamos o conselho do gigante?
esp. - De fato nossa situação é terrível e a morte me seria muito mais bem-vinda do que viver assim para sempre, no entanto, devemos pensar que o Senhor do país para onde vamos nos disse: não tirarás, jamais, a vida de outra pessoa. Imagine então aceitar o conselho de tirar a nossa própria vida! Também, aquele que mata outro homem pode, no máximo, assassinar o corpo do outro, mas matar a si mesmo é matar corpo e alma de uma só vez.
- Além do mais, meu irmão – continuou Esperançoso – você mencionou alívio na sepultura, mas por acaso você esqueceu o inferno para onde, com certeza, vão os assassinos? Assassino nenhum terá vida eterna. Não devemos nos esquecer de que a lei toda não se acha nas mãos do gigante Desespero.
- Outros, pelo que posso deduzir – disse ele ainda, já foram pegos por ele também, assim como nós, mas conseguiram escapar das suas garras. Quem sabe o Deus que criou o mundo não fará morrer o gigante Desespero, ou, uma hora ou outra, este talvez esqueça de trancar a porta. Quem sabe, ainda, daqui a pouco ele pode ter outro desses ataques na nossa frente e perca o controle dos membros.
- Se algum dia isso vier a acontecer de novo – concluiu Esperançoso – usarei de todos os meios possíveis para tentar, com todas as minhas forças, escapar das mãos dele. Que louco fui eu por já não ter tentado isso antes! Mas, seja como for, meu irmão, tenhamos paciência e suportemos por enquanto. O tempo pode nos presentear com uma feliz libertação, portanto não sejamos nunca nossos próprios assassinos.
Com essas palavras, Esperançoso de fato conseguiu aliviar a angústia do seu irmão e assim continuaramjuntos (no escuro) durante todo o dia, na sua condição triste e lastimosa.
Ora, à tarde, o gigante voltou ao calabouço para ver se os prisioneiros haviam aceitado o seu conselho. Chegando lá, porém, encontrou-os vivos. De fato, só um fio de vida lhes restava, pois agora, devido à falta de pão e de água e em função dos ferimentos recebidos no espancamento, mal conseguiam respirar. Contudo, ao encontrá-los vivos, o gigante explodiu em terrível furor e disse-lhes que, por terem desobedecido ao seu conselho, melhor teria sido para eles jamais haver nascido.
Diante disso os dois muito tremeram e acho até que Cristão chegou a desmaiar. Voltando a si, porém, os dois homens retomaram a conversa sobre o conselho do gigante, se seria ou não melhor aceitá-lo. Novamente Cristão parecia disposto a aceitá-lo, mas Esperançoso deu uma segunda resposta, dizendo:
- Meu irmão – disse ele – você agora não se lembra do quanto foi corajoso até aqui? Apoliom não conseguiu esmagá-lo, nem tampouco tudo o que você ouviu, viu ou sentiu no Vale da Sombra da Morte.
Quanta dificuldade, terror e aturdimento você já não passou, para agora demonstrar somente medo? Você não vê que eu, que sou muito mais fraco, também estou neste calabouço com você?
- Esse gigante me feriu tanto quanto a você – disse-lhe – e também negou-me o pão e a água e com você lamento estar aqui na escuridão, mas tenhamos um pouco mais de paciência. Você não lembra a coragem que demonstrou na Feira das Vaidades, não temendo nem grilhões nem a cela, nem mesmo a morte cruenta? Portanto agora suportemos (pelo menos para evitar a vergonha que não convém a um cristão) com paciência, o melhor que pudermos.
Ora, vindo a noite novamente e estando o gigante e sua mulher na cama, quis saber ela dos prisioneiros, se haviam aceitado ou não seu conselho. Mas ele disse:
- São velhacos obstinados. Preferem suportar todo sofrimento ao suicídio.
- Leva-os amanhã ao pátio do castelo e mostra-lhes os ossos e crânios daqueles que você já matou – retrucou a mulher – e convença-os de que, antes do final da semana, você os esmagará do mesmo modo que aos seus outros companheiros.
Quando rompeu a manhã, o gigante foi ter com eles novamente, levando-os até o pátio do castelo. Ali mostrou-lhes o que sua mulher lhe aconselhara.
- Esses – disse ele – foram, um dia, peregrinos que, como vocês, também invadiram os meus domínios.Quando achei que era hora, eu os despedacei. O mesmo farei com vocês dentro de dez dias. Agora podem voltar para a cela.
E assim os levou, aos tabefes, de volta ao calabouço. Durante todo o dia de sábado lá ficaram eles entregues às suas lamentações, como antes. Descendo a noite e estando a Sra. Desconfiança e seu marido, o gigante, já na cama, voltaram eles a falar sobre os prisioneiros. Desespero se admirava que nem com pancadas nem com conselhos conseguia dar cabo deles. Respondeu-lhe a mulher:
- Temo que eles vivam na esperança de que alguém virá libertá-los, ou que tenham consigo alguma chavefalsa, com que pretendem fugir.
- Se você acha que isso é possível, querida – disse o gigante – amanhã de manhã vou revistá-los.
No entanto, por volta da meia-noite de sábado, eles começaram a orar e continuaram em oração até quase o raiar do dia. Pouco antes do romper da aurora, o bom Cristão, meio espantado até, rompeu num palavrório entusiasmado:
- Como sou idiota! – Disse ele. – Ficar aqui neste calabouço malcheiroso, podendo muito bem andar com liberdade! Trago no peito uma chave, chamada Promessa, que (estou convencido) abrirá qualquer fechadura do Castelo da Dúvida.
- Que boa notícia, meu irmão! – Exclamou Esperançoso. – Pois então tire essa chave do peito e experimente.
Foi o que Cristão fez: pegou-a e, com ela, tentou abrir a porta do calabouço. O ferrolho cedeu assim que ele virou a chave e a porta se abriu facilmente. Saindo, os dois foram até a porta externa que leva ao pátio docastelo e, com a chave, abriram-na. Chegaram, então, à porta de ferro. O ferrolho estava terrivelmente enferrujado, mas a chave abriu-o também.
Empurraram então o portão para fugir rapidamente, mas, ao abrir, tanto rangeram as dobradiças que o gigante Desespero acordou. Levantando-se ele às pressas para alcançar seus prisioneiros, sentiu falharem seus membros e não pôde sair no encalço deles, pois o acometia novo ataque.
Os dois homens, correndo, alcançaram novamente a estrada do Rei e ali se sentiram em segurança, pois já estavam fora da jurisdição do gigante.
Depois de passar de volta pela escada, puseram-se a imaginar o que deveriam fazer a fim de impedir que outros peregrinos caíssem nas mãos do gigante Desespero. Assim concordaram em erigir ali uma coluna, gravando no alto o seguinte: "Esta escada leva ao Castelo da Dúvida, guardado pelo gigante Desespero, que despreza o Rei do País Celestial e busca destruir os santos peregrinos". Muitos que por ali passaram mais tarde leram o que estava escrito e escaparam do perigo. Feito isso, cantaram assim:
Do caminho nos desviamos e, no íntimo,
A dor de pisar solo proibido sentimos,
Os que vêm depois tenham cuidado,
Não façam como nós, estouvados,
E, como invasores, não caiam prisioneiros
Do Castelo da Dúvida, do gigante Desespero.