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sábado, maio 13, 2006

Capítulo 18

OS PEREGRINOS ENCONTRAM ATEU E PASSAM PELO SOLO ENFEITIÇADO


Ora, depois de algum tempo viram alguém que, lá longe, vinha só e tranquilo pela estrada na direcção dos dois. Disse Cristão ao companheiro:
- Lá vem um homem que caminha em direcção oposta à de Sião. Decerto vem ter convosco.
esp. - Estou vendo. Fiquemos atentos agora, pois talvez também ele se revele um adulador.
Veio o homem se aproximando, e afinal se encontraram os três. Chamava-se Ateu e perguntou-lhes para onde seguiam.
cris. - Vamos para o monte
Sião -. Ateu caiu em gostosa gargalhada.
cris. - Por que todo esse riso?
ateu - Rio por ver que são ignorantes, impondo-se a si mesmo jornada tão tediosa e, no entanto, provavelmente nada terão para compensar os seus esforços senão a própria viagem.
cris. - Por quê? Acha que não seremos recebidos?
ateu - Recebidos?! Esse lugar com que vocês sonham simplesmente não existe.
cris. - Não neste mundo, mas sim no que há de vir.
ateu - Quando eu estava ainda na minha terra natal, ouvi isso que vocês agora me dizem e, curioso, saí a procurar, mas já há vinte anos busco essa cidade e mesmo em todo esse tempo não vi nem sinal dela.
cris. - Também ouvimos e cremos que há de facto um lugar assim a encontrar.
ateu - Ora, se eu não tivesse acreditado, certamente não teria deixado a minha terra para procurá-lo, mas, nada encontrando (e, se de fato existisse, eu certamente o encontraria, pois busquei bem mais do que vocês), volto pelo mesmo caminho. Buscarei agora ânimo nas coisas que um dia desprezei, trocando-as por esperanças, hoje sei, vãs.
- Será verdade o que diz este homem? – Perguntou Cristão ao companheiro.
esp. - Cuidado. Ele é um dos aduladores. Lembre-se do que já passamos por dar ouvidos a esse tipo de gente. Ora, então não existe nenhum monte Sião? Pois já não avistamos das Montanhas Aprazíveis o portão da cidade? E não devemos também andar na fé? Continuemos, para que o homem do chicote não nos açoite de novo.1
- Você é quem deveria ter-me ensinado esta lição que lhe sussurro agora no ouvido – repreendeu Esperançoso: - “Filho meu, se deixas de ouvir a instrução, desviar-te-ás das palavras do conhecimento" (Pv.19:27). Ouça, meu irmão: não lhe dê ouvidos; creiamos para a salvação da alma (Hb.10:39).
cris. - Meu irmão, não lhe fiz essa pergunta porque duvidasse da verdade da nossa crença, mas para pô-lo à prova e para arrancar de você o fruto da sinceridade do seu coração. Quanto a este homem, sei que está cego pelo deus deste mundo. Prossigamos nós dois, sabendo que cremos na verdade e que nenhuma mentira pode vir da verdade (1 João 2:21)
esp. - Agora sim me alegro na esperança da glória de Deus.
Afastaram-se então do homem, que, rindo deles, seguiu seu caminho.
Vi então no meu sonho que caminharam até alcançar certo país. O ar dessa terra deixava os forasteiros naturalmente sonolentos. Ali Esperançoso viu-se bastante entorpecido e pesado de sono.
esp. - Sinto-me sonolento, tanto que mal consigo manter os olhos abertos. Vamos nos deitar e cochilar um pouco.
cris. - De modo nenhum, pois temo que, dormindo, talvez jamais despertemos.
esp. - Por quê, irmão? O sono é agradável ao homem laborioso. Ficaremos revigorados depois de uma soneca.
cris. - Não se lembra de que um dos pastores nos alertou sobre o Solo Enfeitiçado? Com isso ele quis dizer que não deveríamos dormir, portanto não vamos nos entregar ao sono como os outros, mas sim vigiar e permanecer sóbrios (1 Ts.5:6).
esp. - Reconheço o meu erro. Se eu estivesse aqui sozinho, certamente dormiria, talvez à custa da minha própria vida. Percebo ser verdade o que disse o sábio: "Melhor é serem dois do que um" (Ec.4:9). Até aqui sua companhia tem sido uma bênção para mim e certamente você terá boa recompensa pêlos seus esforços.
cris. - Para espantar a sonolência, então, nada melhor do que uma boa conversa.
esp. - Ora, como não?
cris. - Por onde começamos?
esp. - Por onde Deus começou connosco. Mas, por favor, comece você.
Se os santos se acham sonolentos, mofinos,Que ouçam o que dizem esses dois peregrinos.Sim, que aprendam com eles, devotados,Como manter bem abertos os olhos cansados.A comunhão dos santos, os olhos no eterno,Mantêm o homem desperto e longe do inferno.2
Nesse momento, Cristão começou dizendo:
- Vou lhe fazer uma pergunta. Como foi que você começou a pensar em agir como está agindo hoje?
esp. - Você pergunta como comecei a buscar o bem da minha alma?
cris. - Sim, é essa mesma a minha pergunta.
esp. - Passei muito tempo hipnotizado pelas coisas que se vêem e vendem na nossa feira, coisas que, hoje creio, teriam me arrastado à perdição e à destruição, caso nelas eu persistisse.
cris. - Que coisas eram essas?
esp. - Todos os tesouros e riquezas do mundo. Também adorava a desordem, as orgias, a bebida, os palavrões, a mentira, a impureza, a violação do sábado e muito mais. Tudo o que concorria para a destruição da alma. Mas, ouvindo e reflectindo sobre as coisas divinas, ouvindo de você e também do amado Fiel, que foi morto pela fé e pelo recto viver na Feira das Vaidades, finalmente descobri: "Que o fim delas é morte" (Rm.21) e que por causa dessas coisas a ira de Deus vem "sobre os filhos da desobediência" (Ef5:6).
cris. — E você então imediatamente se deixou arrebatar pelo poder dessa convicção?
esp. - Não, não me dispus logo de início a reconhecer a iniquidade do pecado, nem a condenação que sobrevêm a quem a pratica, bem pelo contrário. Assim que a Palavra penetrou na minha mente, passei a empenhar-me por fechar os olhos à luz.
cris. - Mas o que foi que o fez perseverar naquela vida, mesmo diante dos primeiros esforços do bendito Espírito de Deus em você?
esp. - Bem primeiro porque eu ignorava que aquilo fosse a obra de Deus em mim. Nem me passava pela cabeça que é pelo despertar para o pecado que Deus começa a conversão do pecador. Segundo, porque o pecado era ainda muito agradável à carne, e eu relutava em abandoná-lo. Em terceiro lugar, não via como me separar dos meus velhos companheiros, pois sua presença e seus actos me eram tão desejáveis! E finalmente as horas em que essas convicções tomavam conta de mim eram tão dolorosas e tão aterrorizantes que o meu coração não podia suportá-las, nem mesmo a lembrança delas.
cris. — Então, ao que parece, às vezes você se via livre dessa sua aflição.
esp. — Isso mesmo, só que ela me voltava à mente outra vez e então eu ficava tão mal quanto antes, ou mesmo pior.
cris. - Mas o que é que o fazia lembrar os pecados de novo?
esp. - Muitas coisas. Por exemplo: se eu encontrasse um bom homem nas ruas; ou se eu ouvisse alguém lendo a Bíblia; ou se a minha cabeça começasse a doer; ou se ficasse sabendo que algum vizinho meu estava doente; ou se eu ouvisse os sinos tocarem pêlos mortos; ou se eu mesmo pensasse na morte; ou se ficasse sabendo que alguém morrera de morte súbita. Mas especialmente quando eu pensava em que logo chegaria a hora do meu julgamento.
cris. - E você conseguia se livrar com facilidade da culpa do pecado quando ela lhe sobrevinha por algum desses meios?
esp. - Não, com o passar do tempo não, pois essas coisas me dominavam a consciência cada vez mais rápido. E depois, se eu sequer pensasse em voltar a pecar (embora os meus pensamentos se revoltassem contra isso), o tormento me era dobrado.
cris. - O que você fez então?
esp. - Cheguei à conclusão de que eu deveria me esforçar por me corrigir, pois senão, pensei, certamente seria condenado.
cris. - E de fato se esforçou por corrigir-se?
esp. - Sem dúvida nenhuma. Fugi não só dos meus pecados, mas também dos meus companheiros de pecado, e passei a me dedicar a deveres religiosos, como a oração, a leitura, o arrependimento do pecado, o falar a verdade ao próximo, etc. Fiz estas e tantas outras coisas, que nem posso relatar todas elas aqui.
cris. - E então passou a se sentir melhor?
esp. - Passei, por algum tempo, mas afinal a minha angústia novamente me afligiu, apesar de toda a renovação que me impus.
cris. - Mas como, se você já estava renovado?
esp. - Por várias razões, especialmente ao lembrar-me de coisas como esta: "Todas as nossas justiças são como trapo da imundície". "Por obras da lei ninguém será justificado". "Depois de haverdes feito quanto vos foi ordenado, dizei: Somos servos inúteis" (Is.64:6;Gl.2:16;Lc.17:10), além de muitas outras semelhantes.
- A partir disso – acrescentou Esperançoso – comecei a reflectir comigo: se todas as minhas justiças não passam de trapo da imundície, se pelas obras da lei homem nenhum pode ser justificado e se depois de ter feito tudo não passamos de servos inúteis, então é pura loucura pensar em alcançar o céu pela lei. – E concluiu, dizendo:
— Pensei também: se um homem contrai uma certa dívida no comércio, mas depois passa a pagar à vista tudo o que compra, ainda assim sua antiga dívida permanece na caderneta e por ela o comerciante pode processá-lo e lançá-lo na prisão, até que pague a dívida.
cris. - Bom e como você aplicou isso a si mesmo?
esp. - Ora, assim pensei comigo: por conta dos meus pecados acumulei enorme dívida no livro de Deus e, mesmo que agora esteja renovado, não conseguirei liquidar esse débito. Devo, portanto, pensar nisso constantemente, mesmo diante de tudo o que já fiz para me corrigir. Mas como poderei me livrar da condenação em que me enredei por causa dos pecados do meu passado?
cris. - Muito bem, óptimo proceder esse seu. Mas, por favor, continue.
esp. - Outra coisa que me vem perturbando, desde as minhas primeiras reformas, é que, ao examinar detidamente o melhor que hoje faço, ainda vejo pecado. Pecado novo, combinado ao de melhor que faço. Então sou obrigado a concluir que, apesar dos bons conceitos que eu tinha de mim mesmo e dos meus deveres, a cada novo acto cometo pecado suficiente para ir para o inferno, mesmo que a minha vida anterior fosse imaculada.
cris. - Mas o que você fez então?
esp. - O que fiz? Simplesmente não sabia o que fazer, até quando enfim criei coragem para abrir o meu coração com Fiel, pois eu e ele nos conhecíamos bem. Ele me disse que, a menos que eu obtivesse a justiça de um homem que jamais houvesse pecado, nem eu mesmo nem toda a justiça do mundo poderia me salvar.
cris. - E você crê que ele disse a verdade?
esp. - Se ele me tivesse dito isso quando eu me achava contente e satisfeito com as minhas próprias reformas, certamente eu o teria julgado louco pelo seu esforço insano, mas como hoje percebo a minha própria insanidade e o pecado que se une aos meus melhores actos, sou forçado a concordar com ele.
cris. - Mas, quando ele lhe sugeriu isso, você julgou que seria possível encontrar tal homem, homem de quem se podia dizer com justiça que jamais havia pecado?
esp. - Devo confessar que, a princípio, as palavras me soaram esquisitas, mas depois de conversar mais com ele, fiquei plenamente convencido dessa verdade.
cris. - E você lhe perguntou que homem era esse e como você poderia ser justificado por intermédio dele?
esp. - Perguntei, sim e ele me disse que era o Senhor Jesus, que estava à direita do Altíssimo. E assim, disse ele, a única saída é ser justificado por ele, crendo naquilo que ele mesmo fez nos tempos em que viveu entre nós, para depois sofrer e morrer no madeiro. Perguntei-lhe ainda como é que a justiça desse homem poderia ser tão eficaz, a ponto de justificar outra pessoa perante Deus. E ele me disse que esse homem era o próprio Deus todo-poderoso e o que ele fez, enfrentando a própria morte, não foi por si mesmo, mas por mim, a quem se deveriam atribuir seus actos e a dignidade destes, desde que eu cresse nele.
cris. - E o que você fez então?
esp. - Levantei objecções a essa crença, pois pensava que ele não estaria disposto a me salvar.
cris. - E o que lhe disse então Fiel?
esp. - Encorajou-me a ir vê-lo. Eu lhe disse que isso seria presunção da minha parte, mas ele disse que não, que eu estava convidado a fazê-lo. Depois me deu um livro ditado por Jesus, para me encorajar a buscá-lo com mais liberdade. A respeito desse livro, disse-me ainda que nele cada “i” e cada til eram mais firmes do que o céu e a terra.
- Perguntei-lhe, então – acrescentou Esperançoso – o que deveria fazer quando o encontrasse e ele me respondeu que eu deveria ficar de joelhos e suplicar, de todo o meu coração e de toda a minha alma, que o Pai o revelasse a mim. Então perguntei-lhe como eu deveria fazer essa súplica. E ele disse: você vai encontrá-lo num propiciatório, onde ele fica o ano inteiro para conceder o perdão àqueles que o procuram. – E concluindo seu relato, Esperançoso disse:
- Declarei-lhe então que não sabia o que dizer quando lá chegasse e ele me mandou dizer isto: "Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador que sou, e faze-me conhecer e crer em Jesus Cristo, pois sei que sem a sua justiça, ou sem que eu tenha fé nessa justiça, certamente serei lançado fora. Senhor, ouvi dizer que tu és um Deus compassivo, que determinaste que teu Filho Jesus Cristo seria o Salvador do mundo e que, além disso, tu estás disposto a concedê-lo ao pecador miserável que sou (e sou de fato pecador). Senhor, aproveita então esta oportunidade e manifesta a tua graça na salvação da minha alma, por meio do teu Filho Jesus Cristo. Amém".
cris. - E então você fez o que ele lhe aconselhou?
esp. - Sim e muitas, muitas vezes.
cris. - E o Pai certamente lhe revelou seu Filho...
esp. - Não na primeira vez, nem na segunda, nem na terceira, nem na quarta, nem na quinta. Não. Não foi nem mesmo na sexta.
cris. - O que você fez então?
esp. - O que fiz? Para dizer a verdade, nem sabia o que fazer.
cris. - Não foi tentado a deixar de orar?
esp. - Fui, umas cem vezes. Ou duzentas.
cris. - E por que não o fez?
esp. - Eu acreditava que o que me disseram era verdade: que sem a justiça desse Cristo, nem mesmo o mundo todo poderia salvar-me. Então pensei comigo: se esqueço tudo isso, morro; e no trono da graça o máximo que me acontecerá é também a morte. Assim, me veio esta ideia: "Se tardar, espera-o, porque certamente virá, não tardará" (Heb.2:3. Assim continuei orando até que o Pai enfim me revelasse seu Filho.
cris. - E como foi que ele lhe revelou o Filho?
esp. - Não o vi com os olhos da carne, mas com os olhos do entendimento. Foi assim: certo dia eu estava muito triste, mais triste do que jamais me sentira na vida. Essa tristeza me veio pela percepção da grandeza e da iniquidade dos meus pecados. Então, quando eu já não esperava nada senão o inferno e a eterna perdição da minha alma, vi, de repente, o Senhor Jesus olhar lá do céu para mim, dizendo: "Crê no Senhor Jesus e serás salvo" (At.16:31). – E Esperançoso continuou, dizendo:
- Mas respondi: "Senhor, sou um grande pecador, pecador de facto". E ele me disse: 'A minha graça te basta" (2 Cor.12:9). Então falei: "Mas, Senhor, o que significa crer?". Foi aí, ao me vir à mente esta passagem
- "O que vem a mim, jamais terá fome; e o que crê em mim, jamais terá sede" (João 6:35) – que percebi que crer e vir são a mesma coisa e que aquele que vem, ou seja, busca a salvação de Cristo com o coração e o afecto, esse de fato crê em Cristo.
- Então meus olhos marejavam – emocionou-se Esperançoso – e pedi ainda: "Mas Senhor, será que um grande pecador como eu poderá de facto ser aceito por ti, e salvo por ti?". E o ouvi dizer: "O que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora" (João 6:37). Falei depois: "Mas como, Senhor, devo proceder contigo, quando for a ti, para que a minha fé se faça correia?". E ele respondeu: "Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores. Ele é o fim da lei para justiça de todo aquele que crê. Ele morreu pêlos nossos pecados, e ressuscitou para nossa justificação. Ele nos ama, e pelo seu sangue nos libertou dos nossos pecados.Ele é mediador entre Deus e nós. Ele vive sempre para interceder por nós" (1Tm.1:15; Rm.10:4, 4:25; Ap.1:5;1Tm.2:5; Hb.7:25).
- E de tudo isso – disse Esperançoso – concluí que devo procurar justiça na sua pessoa e a expiação dos meus pecados pelo seu sangue. O que ele fez em obediência à lei do seu Pai, submetendo-se ao castigo, não foi por si mesmo que fez, mas por aquele que, grato, aceita esse sacrifício para sua salvação. E agora meu coração estava repleto de alegria, os olhos cheios de lágrimas e o coração transbordante de amor pelo nome, pela pessoa e pela obra de Jesus Cristo.
cris. - De fato foi uma revelação de Cristo à sua alma.
Mas, diga-me: que efeito exerceu tudo isso sobre o seu espírito?
esp. - Fez-me ver que o mundo inteiro, apesar de toda a sua justiça, está num estado de condenação. Fez-me ver que, por ser justo, Deus Pai pode justificar, com rectidão, o pecador que busca a Jesus. Deixou-me profundamente envergonhado da iniquidade da minha vida anterior, fazendo-me conhecer e sentir a minha própria ignorância. Pois, antes jamais tivera no coração sentimento que me revelasse a maravilhosa beleza de Jesus Cristo.
- Fez-me amar a vida de santidade – acrescentou Esperançoso – e desejar fazer algo para honra e glória do nome do Senhor Jesus. Pensei: tivesse eu agora mil litros de sangue nas veias, poderia vertê-lo todo por amor de Jesus Cristo.