VOCÊ NÃO ESTÁ NA PÁGINA PRINCIPAL. CLIQUE AQUI PARA RETORNAR





sábado, maio 13, 2006

Capítulo 19

IGNORÂNCIA: UM CRISTÃO APENAS DE NOME


Então vi no meu sonho que Esperançoso olhava para trás. E eis que viu Ignorância se aproximando, aquele homem que já haviam encontrado antes no caminho.
- Olhe lá – disse ele a Cristão. – Veja só o quanto esse rapaz se retardou pelo caminho.
cris. - E verdade, lá vem ele. Não queria mesmo a nossa companhia.
esp. - Mas, creio eu, não lhe faria mal se nos tivesse acompanhado.
cri. - De fato. Mas lhe garanto que ele pensa de outro modo.
esp. - Também acho. Seja como for, esperemos um pouco por ele. – E esperaram. Quando já estava próximo, Cristão o chamou:
- Vamos homem, por que é que você ficou tão para trás?
ign. - Prefiro caminhar sozinho, a menos que goste mais da companhia. – Cristão então sussurrou a Esperançoso:
- Não lhe disse que ele pouco se importa com a nossa companhia? Mas assim mesmo vamos tratar de passar o tempo conversando, pois este lugar aqui é mesmo solitário.
Dirigindo-se agora a Ignorância, falou:
- Ora, como vai? Como anda a relação da sua alma com Deus?
ign. - Espero que vá bem, pois estou sempre repleto de bons pensamentos que me vêm à mente para me consolar na caminhada.
cris. - Que bons pensamentos são esses? Pode-nos dizer?
ign. - Ora, penso em Deus e no Céu.
cris. - Também os demónios e as almas pensam como você.
ign. - Pois não só penso neles, mas os desejo.
cris. - Muitos que jamais chegarão lá também desejam. A alma do preguiçoso deseja e nada tem (Pv.13:4).
ign. - Mas não só penso neles, pois tudo abandono por eles.
cris. — Disso duvido, pois abandonar tudo é coisa difícil. Mais difícil do que muitos imaginam por aí. Mas o que o fez pensar que você abandonou tudo por Deus e pelo céu?
ign. - Quem me diz isso é o meu coração.
cris. - Diz o sábio: "O que confia no seu próprio coração é insensato" (Pv.28:26).
ign. - Isso se diz de um coração mau, mas o meu é bom.
cris. - Você pode provar isso?
ign. - Ele me consola com a esperança do céu.
cris. - Isso talvez seja uma armadilha, pois o coração do homem pode consolá-lo com esperanças de algo que ele não tem por que esperar.
ign. - Mas o meu coração e a minha vida estão em harmonia e portanto essa esperança é bem fundada.
cris. - Quem foi que lhe disse que o seu coração e a sua vida estão em harmonia?
ign. - O meu próprio coração, ora.
cris. - Então, pergunte-lhe se eu sou um ladrão! Seu coração certamente lhe dirá que sim! A menos que a palavra de Deus dê testemunho a esse respeito, qualquer outro testemunho nada vale.
ign. - Mas os bons pensamentos não procedem de um bom coração? E não é santa a vida que está de acordo com os mandamentos de Deus?
cris. - Correcto. É de um bom coração que procedem os bons pensamentos e disso certamente procede o santo viver, conforme aos mandamentos de Deus. Mas uma coisa é evidenciar isso, outra bem diferente é só imaginar que é assim.
ign. - Ora, para você o que são bons pensamentos e um viver conforme aos mandamentos de Deus?
cris. - Há bons pensamentos de vários tipos. Alguns a respeito de nós mesmos, outros de Deus, outros de Cristo e ainda outros a respeito de coisas diversas.
ign. - E quais são os bons pensamentos a respeito de nós mesmos?
cris. - Aqueles que concordam com a Palavra de Deus.
ign. - E quando é que os nossos pensamentos a respeito de nós mesmos concordam com a Palavra de Deus?
cris. - Quando fazemos de nós o mesmo juízo que faz a Palavra. Explico-me: a Palavra de Deus diz o seguinte das pessoas em estado natural: "Não há justo, nem sequer um; não há quem faça o bem" (Rm.3:10, 12). Diz também: "Que todo desígnio do coração do homem é continuamente mau" (Gn.6:5). E ainda: "É mau o desígnio íntimo do homem desde a sua mocidade" (Gn.8:21). Ora, quando é isso que pensamos de nós, com absoluta consciência, então nossos pensamentos são bons, pois estão conformes à Palavra de Deus.
ign. - Jamais poderei crer que o meu coração seja assim tão mau.
cris. - Então você nunca teve sequer um único bom pensamento a seu próprio respeito em toda a sua vida. Mas permita-me prosseguir. Assim como a Palavra faz juízo do nosso coração, também o faz em relação aos nossos caminhos. Então, quando os pensamentos do nosso coração e os nossos caminhos concordam com o juízo que a Palavra faz de ambos, então ambos são bons, pois concordam com a Palavra.
ign. - Esclareça por favor.
cris. - Ora, a Palavra de Deus diz que os caminhos do homem são tortuosos; que não são bons, mas perversos. Diz que os homens naturalmente se afastam do bom caminho, que eles nem mesmo conhecem. Ora, quando o homem assim considera os seus caminhos, ou seja, quando ele, humilhando-se em seu coração, reflecte desse modo, aí sim ele tem bons pensamentos a respeito dos seus caminhos, pois agora estão de acordo com o juízo da Palavra de Deus.
ign. - E quais são os bons pensamentos a respeito de Deus?
cris. - Como já disse a respeito de nós mesmos, os nossos pensamentos a respeito de Deus são bons quando concordam com o que a Palavra diz dele. E isso acontece quando pensamos no seu ser e nos seus atributos segundo o que a Palavra nos ensina. Neste momento, no entanto, não posso explicar-lhe isso detalhadamente.
- Mas falando de Deus com respeito a nós – prosseguiu Cristão – só temos pensamentos correctos de Deus quando pensamos que ele nos conhece melhor do que nós mesmos nos conhecemos e que ele pode ver em nós o pecado quando e onde nós mesmos não podemos.
- Temos pensamentos correios de Deus – esclareceu ainda Cristão – quando pensamos que ele conhece os nossos pensamentos mais íntimos e que o nosso coração, com todas as suas profundezas, está sempre aberto aos seus olhos. Também quando pensamos que toda a nossa justiça é abominável a Deus e que portanto ele não pode tolerar que nos coloquemos diante dele com confiança alguma nas nossas obras, mesmo nas melhores.
ign. - Você por acaso acha que sou tolo a ponto de pensar que Deus não pode ver mais além do que eu? Ou que eu me apresentaria diante de Deus com orgulho das minhas melhores obras?
cris. - Ora, o que então você pensa disso?
ign. - Sendo breve, penso que devemos crer em Cristo para alcançar a justificação.
cris. - Como?! Como é que você pensa que deve crer em Cristo se não enxerga a necessidade que você tem dele? Você não vê nem as suas debilidades originais nem as actuais, mas mesmo assim você tem essa opinião de si mesmo, e do que você faz. Isso prova claramente que você nunca percebeu a necessidade de a justiça pessoal de Cristo justificá-lo perante Deus. Como você diz então: "Eu creio em Cristo"?
ign. - Creio, sim e muito, apesar disso tudo.
cris. - E como você crê?
ign. — Creio que Cristo morreu pêlos pecadores e que eu serei justificado perante Deus, ficando livre da maldição. E tudo pela sua graciosa aceitação da minha obediência à sua lei. Ou melhor: Cristo torna os meus deveres religiosos aceitáveis ao seu Pai em virtude dos seus méritos, sendo eu assim justificado.
cris. - Se me permite, vou contestar essa sua confissão de fé. Primeiro, você crê com fé imaginária somente, pois essa fé não se encontra descrita em lugar nenhum da Palavra. Segundo, a fé em que se baseia sua crença é falsa porque você aplica a justificação da justiça pessoal de Cristo à sua própria justiça. Terceiro, essa fé não faz de Cristo justificador da sua pessoa, mas dos seus actos, o que é falso.
- E em quarto lugar – concluiu Cristão – essa fé não só é enganosa, mas certamente trará sobre você a ira no dia do Deus Todo-Poderoso, pois a verdadeira fé justificadora faz que a alma (sabedora da sua perdição na lei) busque refúgio na justiça de Cristo (e ela não consiste num acto de graça para que a sua obediência seja aceita por Deus para a justificação, mas sim na obediência pessoal de Cristo à lei, que o fez sofrer por nós, em nossas mãos, tudo o que a lei exigiu). Essa é a justiça, afirmo-lhe, que a verdadeira fé aceita. É debaixo dela que a alma se refugia, e é por causa dela que a alma se apresenta imaculada perante Deus, sendo então aceita e resgatada da condenação.
ign. - O quê?! Então você quer que acreditemos somente no que Cristo fez, sem participação nossa? Essa presunção certamente afrouxaria as rédeas das nossas paixões, permitindo que vivamos como bem quisermos. Afinal, se assim é, o que importa como vivamos se depois seremos justificados pela justiça pessoal de Cristo, bastando para isso apenas crer nela?
cris. - Ignorância é o seu nome e você bem o merece. Essa sua resposta demonstra o que digo. Você ignora a justiça justificadora e também como você pode salvar a sua alma, por essa fé, da pesada ira de Deus. Sim, você ignora também as verdadeiras consequências da fé salvadora na justiça de Cristo, que significa curvar e oferecer o coração a Deus em Cristo, amar o seu nome, a sua palavra, os seus caminhos e o seu povo, mas não como você, na sua ignorância, imagina.
esp. - Pergunte a ele se algum dia Cristo já lhe foi revelado do céu.
ign. - Quê?! Ternos aqui então um homem de revelações? Creio que aquilo que vocês dois, e todos os outros como vocês, dizem sobre essa questão não passa do fruto de mentes perturbadas. 1
esp. - Convenhamos, homem! Cristo está em Deus de um modo tão incompreensível às inquietações naturais de toda carne que homem nenhum pode conhecê-lo de uma maneira salvadora, a não ser que Deus-Pai o revele ao homem.
ign. - Essa é a fé de vocês, não a minha. Mas a minha e disso não duvido, é tão boa quanto a de vocês, embora eu não traga na alma tantos caprichos como vocês trazem.2
cris. - Peço licença para intervir. Você não deveria falar com tanto desprezo sobre este assunto. Reafirmo categoricamente o que meu irmão já lhe disse: homem nenhum pode conhecer Jesus Cristo senão pela revelação do Pai. E lhe digo mais: a fé, pela qual a alma se agarra a Cristo (se é que me expresso bem), deve vir necessariamente pela espantosa grandeza do imenso poder divino. Mas percebo, pobre Ignorância, que você não sabe nada dessa fé. Acorde, então: olhe a sua própria iniquidade e busque refúgio no Senhor Jesus, pois, pela justiça de Cristo, que é a justiça de Deus (pois ele mesmo é Deus), você será libertado da condenação.
ign. - Vocês andam rápido demais. Não posso mais acompanhá-los. Vão então na minha frente. Quanto a mim, prefiro ficar para trás. – Então os dois disseram:
Será insensato, Ignorância, a ponto mesmo
De desprezar o conselho, andando a esmo?
E se ainda o recusa, saberá logo, é certo,
O mal que se faz, julgando-se assim desperto.
Lembre-se, homem, não tema, tempo ainda há,
Pois quem aceita o bom conselho salvo será.
Ouça, então: se ainda assim o despreza, tonto,
Sairá perdendo e há de chorar o desaponto.
Cristão, dirigindo-se ao seu companheiro, falou assim:
- Bom, vamos então meu caro Esperançoso. Vejo que eu e você devemos caminhar sós novamente.
Então vi no meu sonho que os dois apertavam o passo, enquanto Ignorância ficava para trás, vacilante. Enovamente Cristão falou ao companheiro:
- Tenho muito dó desse pobre homem. Certamente se dará mal no fim.
esp. - É pena! Mas há muitos e muitos como ele em nossa cidade, famílias inteiras, até ruas inteiras. E quantos também não são os peregrinos que se acham nesse estado! Imagine você: se tantos dos nossos estão assim, quantos não haverá na terra natal desse homem!
cris. - De fato diz a Palavra: "Cegou-lhes os olhos (...), para que não vejam" (João 12:40). Mas agora que estamos sós, o que é que você acha desses homens? Será que nunca têm convicção do seu pecado, temendo consequentemente que seu estado seja perigoso?
esp. - Peço que você mesmo responda essa pergunta, já que é o mais velho de nós dois.
cris. - Pois isto digo: sou de opinião que às vezes eles podem ter tal convicção, mas, sendo naturalmente ignorantes, não compreendem que ela trabalha para o seu bem. Assim, tentam desesperadamente sufocá-la, e presunçosamente continuam a exaltar-se segundo os caminhos do seu próprio coração.
esp. - Acredito sinceramente no que você diz, que o medo muito trabalha para o bem dos homens, para corrigi-los na própria raiz, levando-os à peregrinação.
cris. - Sem dúvida nenhuma é assim que age o medo, sendo ele correio. Pois assim prega a Palavra: "O temor do Senhor é o princípio da sabedoria" (SI 111:10; Pv.9:10).
esp. - E como você definiria o medo correcto?
cris. - O medo verdadeiro, ou correcto, se revela em três coisas. Primeiro, na sua origem, pois é provocado pela salvadora convicção do pecado. Segundo, ele leva a alma a agarrar-se a Cristo em busca da salvação. E terceiro, ele gera e sustenta na alma grande reverência por Deus, pela sua palavra e pêlos seus caminhos, conservando a alma terna e incutindo-lhe também o receio de afastar-se desses caminhos, seja para a direita ou para a esquerda, ou de fazer qualquer coisa que desonre a Deus, viole a paz da alma, entristeça o Espírito ou faça o inimigo falar com censura nos lábios.
esp. - Muito bem. Creio que você de fato falou a verdade. Será que já saímos do Solo Enfeitiçado?
cris. - Por quê? Cansou-se já da nossa conversa?
esp. - Não, de modo nenhum. Mas gostaria de saber onde estamos.
cris. - Ainda temos uns três quilómetros pela frente antes de sair destas terras. Mas retomemos o assunto. Ora, os ignorantes não sabem que essas convicções lhes incutem um medo que vem para o seu próprio bem e por isso procuram sufocá-las.
esp. - E como é que tentam sufocá-las?
cris. - Bem, em primeiro lugar, eles pensam que esses temores são gerados pelo Diabo, quando na verdade são incutidos por Deus. Pensando assim, buscam resistir a eles, pois julgam que os temores poderão levá-los à ruína. Em segundo lugar, também supõem que esses temores tendem a corromper a sua fé, quando na verdade, pobres homens que são, não possuem mesmo fé nenhuma. Sendo assim, endurecem seu coração contra eles. Em terceiro lugar, julgam que não devem temer e portanto, apesar dos seus temores, tomam-se presunçosamente confiantes. Por último, acham que esses temores podem desonrar a sua antiga e lamentável falsa santidade e portanto lhes resistem com todas as suas forças.
esp. - Sei disso por experiência própria; pois antes de me convencer disso, também aconteceu comigo.
cris. - Bom, deixemos agora de lado o nosso caro Ignorância e tratemos de outra questão bastante proveitosa.
esp. - Tem todo o meu apoio. Gostaria que você mais uma vez começasse.
cris. - Há cerca de dez anos, você por acaso não conheceu um homem chamado Temporário, que na época era importante dentro da religião na nossa terra?
esp. - Se o conheci? Mas claro! Ele morava em Desventura, cidade a cerca de três quilómetros de Honestidade. E era vizinho de certo homem chamado Recuo.
cris. - Isso mesmo. Só que os dois, na verdade, moravam na mesma casa. Bom, esse homem – Temporário – um dia viveu um grande despertar. Creio que então ele enxergava os seus pecados e o castigo que sofreria por causa deles.
esp. - Concordo com você, pois a minha casa não ficava nem a cinco quilómetros da dele e ele volta e meia vinha me visitar, isso durante muitos anos. Eu na verdade tinha pena do homem, mas nutria ainda alguma esperança nele. Porém, como se sabe, nem todos os que clamam "Senhor, Senhor" serão salvos.
cris. - Ele me disse certa feita que estava decidido a partir em peregrinação, como agora fazemos nós dois, mas de repente conheceu um certo Salva-a-Si-Mesmo e então virou-me a cara.
esp. -Já que estamos falando dele, vamos ver a razão desse súbito retrocesso dele e de tantos outros.
cris. - Certamente será um debate muito proveitoso. Mas comece você, por favor.
esp. - Bom, na minha opinião, há quatro razões para tal. A primeira é que, embora a consciência desses homens desperte, seus pensamentos não mudam. Portanto, quando o poder da culpa se esgota, cessa o que os tornava religiosos. E assim naturalmente voltam à sua antiga conduta, pois não vemos que o cão indisposto por causa de algo que comeu, enquanto a indisposição o acomete, vomita e lança tudo fora? Não que o faça por raciocinar livremente (se é que um cão raciocina), mas apenas porque era algo que lhe desarranjava o estômago. Quando, porém, passa o mal-estar e seu estômago se alivia, não estando seus desejos alheios ao próprio vómito, ele logo se vira e lambe tudo de volta. Por isso é bem verdade o que está escrito: "O cão voltou ao seu próprio vómito" (2 Pé 2:22).
- Portanto – disse ele – se arde o seu desejo pelo céu em virtude apenas da ideia e do medo dos tormentos do Inferno, quando a ideia do Inferno passa e os medos da perdição esfriam, também esfriam os desejos pelo céu e pela salvação. Isso quer dizer que, ao desaparecerem a culpa e o medo, morre também o desejo pelo céu e pela felicidade, voltando eles aos seus caminhos tortuosos.
- Em segundo lugar – continuou Esperançoso – eles são dominados por medos tirânicos. Falo agora dos medos que têm dos homens: "Quem teme ao homem arma ciladas" (Pv.29:25). Assim, embora pareçam arder de desejo pelo céu enquanto as labaredas do Inferno lambem as suas orelhas, quando o terror amaina, eles logo mudam de opinião: ou seja, pensam que o melhor é ser esperto, não correr o risco (sabe-se lá pelo quê) de perder tudo, ou, pelo menos, de trazer para si aflições inevitáveis e desnecessárias. E assim novamente se entregam ao mundo.
- Em terceiro lugar – acrescentou – a vergonha que acompanha a religião também funciona como obstáculo no seu caminho, pois são orgulhosos e soberbos e a religião aos seus olhos é vil e desprezível. Portanto, depois de perder o medo do Inferno e da ira vindoura, voltam às suas antigas práticas.
- Em quarto lugar – concluiu – a culpa e a ponderação do terror os afligem. Não gostam de olhar a sua miséria antes que ela os alcance. Embora, talvez, a primeira visão dessa miséria pudesse fazê-los buscar refúgio no lugar para onde fogem os justos à procura de segurança; mas isso só se tiverem amor por essa visão. Contudo, como já sugeri antes, eles na verdade evitam a ideia de culpa e terror e, quando se vêem livres do despertar para o terror e a ira de Deus, é com alegria que endurecem o coração, preferindo os caminhos que cada vez mais o endureçam.
cris. - Você está quase no âmago da questão, pois a razão de tudo é a falta de transformação nos pensamentos e na vontade. Portanto eles se assemelham ao criminoso diante do juiz: treme, agita-se e parece se arrepender muito sinceramente, mas a razão de tudo é o medo da forca e não a aversão ao crime. Isso se torna evidente, pois basta dar ao homem a liberdade, que logo volta a roubar, perseverando no crime. Porém, se a sua mente se transforma, ele passa a agir de outro modo.
esp. - Acabei de lhe mostrar as razões do retrocesso. Agora peço que me mostre como isso acontece.
cris. - Com o maior prazer. Primeiro, eles afastam os seus pensamentos, o mais que podem, da lembrança de Deus, da morte e do juízo vindouro. Depois, se desvencilham pouco a pouco dos deveres privados, como a oração individual, o refreio das paixões, a vigília e o arrependimento do pecado, entre outros. Em terceiro lugar, passam a evitar a companhia de cristão activos e calorosos. Mais tarde, tornam-se esquivos aos deveres públicos, como ouvir, ler e discutir assuntos piedosos, entre outros.
- Em seguida – continuou – passam a procurar defeitos na vida dos piedosos e, usando como pretexto alguma fraqueza que, diabolicamente, tenham verificado nos outros, tratam de se ver livres da religião.
- Depois – disse ele – começam a se ajuntar com homens carnais, libertinos, devassos e passam a ter, em segredo, conversas carnais e devassas. Muito se alegram quando vêem o mesmo defeito em gente considerada honesta, para que assim possam seguir seu exemplo mais ousadamente.
- Depois disso – acrescentou ainda – começam a praticar certos pecados abertamente e finalmente, insensíveis, revelam-se como verdadeiramente são. Lançados assim novamente no abismo da miséria, a menos que um milagre da graça o evite, perecem para sempre nos seus próprios enganos.