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sábado, maio 13, 2006

Capítulo 17

OS PEREGRINOS ENCONTRAM-SE COM ADULADOR


Adormeci novamente e voltei a sonhar. Vi, então, os mesmos dois peregrinos descendo as montanhas pelo caminho que levava à cidade. Ora, pouco além das montanhas, no vale à esquerda, ficava a terra da Presunção. Atravessando essa terra via-se uma alameda sinuosa que cruzava o caminho dos peregrinos. Ali encontraram um moço muito vivo que vinha daquelas bandas; seu nome era Ignorância. Cristão perguntou-lhe de onde vinha e para onde seguia.
ign. - Senhor, nasci naquelas terras, um pouco à esquerda daqui. Sigo rumo à Cidade Celestial.
cris. - Mas como pensa em superar as dificuldades que talvez encontre pelo caminho que leva ao portão?
ign. - Como todo o mundo faz.
cris. - Mas o que você tem a mostrar diante do portão, para que se abra a você?
ign. - Conheço a vontade do meu Senhor e tenho vivido honradamente. Dou a cada homem o que lhe cabe; oro, jejuo, pago o dízimo e dou esmolas e ainda deixei a minha terra por essa outra a que me dirijo.
cris. - Mas você não veio pela porta estreita, isto é, pelo começo do caminho. Você chegou aqui foi por esta alameda sinuosa, por isso, seja qual for sua auto-avaliação, quando chegar o dia do juízo, temo que você venha a ser acusado de ladrão e salteador, não sendo jamais admitido na cidade.
ign. - Cavalheiros, vocês são totalmente estranhos para mim. Não os conheço. Contentem-se em seguir a religião da sua terra, que eu seguirei a religião da minha terra. Esperemos que tudo acabe bem. E quanto à porta de que você falou, todo o mundo sabe que fica a grande distância da nossa terra. Não creio que homem nenhum destas bandas sequer conheça o caminho até lá. Na verdade, pouco importa que saibam ou não, pois temos, como vocês podem ver, uma bela e prazenteira alameda verdejante que desce da nossa terra até este caminho.
Vendo Cristão que o homem se considerava sábio, sussurrou a Esperançoso:
- Maior esperança há no insensato do que nele (Pv.26:12). — E acrescentou: - Quando o tolo vai pelo caminho, falta-lhe o entendimento, e assim a todos mostra que é estulto (Ec.10:3). Que fazemos então? Conversamos mais com ele ou partimos agora mesmo, deixando que pondere o que já ouviu até aqui. procurando-o de novo mais tarde para ver se pouco a pouco podemos lhe fazer algum bem? – Esperançoso então, reflectiu:
Que medite o que ouviu algum tempoE não recuse o bom conselho, atento.Para que assim não ignore afinalA meta mais plena e essencial.Diz Deus que quem não tem juízo.Para este nunca haverá paraíso.
Depois acrescentou:
- Não creio que seja bom dizer-lhe tudo de uma só vez. Vamos deixá-lo para trás, por enquanto, e conversemos com ele mais tarde, segundo o que for capaz de absorver.
Então os dois retomaram a marcha, e Ignorância os seguia mais atrás. Quando estavam já a boa distância do moço, entraram por uma alameda bem sombria, onde encontraram um homem que fora atado por sete demónios, com sete cordas resistentes. Os demónios o arrastavam para a porta que os peregrinos viram na encosta do morro. Ora, o bom Cristão se pôs a tremer, também Esperançoso, seu companheiro. Estando, porém, os demónios a arrastar o homem, Cristão quis observá-lo para ver se o conhecia, pois pensou que talvez fosse certo Desviado que morava na cidade da Apostasia. No entanto, não pôde ver o seu rosto com clareza porque o homem mantinha a cabeça baixa, como ladrão pego em flagrante. Mas, passando por ele, Esperançoso virou-se e enxergou nas costas do homem um cartaz com a inscrição: "Professor libertino eapóstata condenável". Então disse Cristão ao amigo:
- Agora me lembro de algo que me disseram a respeito de certo facto ocorrido a um bom homem dessas bandas. Chamava-se Pequena Fé, mas era homem bom e morava no vilarejo da Sinceridade. Foi este o fato: à entrada desse atalho há uma vereda que vem da Porta Larga, denominada Vereda dos Mortos por causa dos assassinatos comumente perpetrados ali.
- Ao sair Pequena Fé em peregrinação, como nós agora o fazemos – disse ao amigo – calhou de ele recostar-se ali para dormir. Ora, três irmãos – bandidos muito fortes e cujos nomes eram Covardia, Desconfiança e Culpa – vinham da Porta Larga por aquela vereda. Assim que viram Pequena Fé, foram correndo até onde ele estava.
- O bom homem acabava de despertar do sono – continuou Cristão – e se punha de pé para seguir caminho. Mas então o cercaram e, com ameaças, o fizeram parar. Pequena Fé ficou lívido como cera, sem forças para lutar ou fugir. Gritou então Covardia, um dos bandidos: "Dê-me a bolsa". Como Pequena Fé relutou em entregá-la (pois não queria perder o dinheiro), Desconfiança se aproximou dele e, metendo a mão no bolso do homem, arrancou-lhe uma bolsa cheia de prata. "Ladrões, ladrões", gritou Pequena Fé.
- Culpa, tomando o enorme porrete que tinha nas mãos – contou Cristão – atingiu Pequena Fé na cabeça, deixando-o estirado no chão com o golpe. Ficou ali a sangrar, como moribundo, enquanto os bandidos permaneciam ao seu redor, mas quando estes perceberam que vinha alguém pela estrada e temendo ser ele um certo Graça Abundante, morador da cidade de Boa Confiança, os três trataram de fugir, deixando o bom homem entregue à própria sorte. Ora, depois de algum tempo Pequena Fé voltou a si e, pondo-se de pé, saiu cambaleando pelo caminho. E foi essa a história.
esp. - Mas então tomaram dele tudo o que tinha?
cris. - Não. Ele conservou suas jóias, pois os ladrões não conseguiram levá-las. Mas o bom homem ficou muito angustiado com a perda, já que os ladrões levaram a maior parte do seu dinheiro para as despesas comuns, restando-lhe apenas uma pequena soma, porém não o suficiente para sustentá-lo até o final da viagem. Sendo assim (se não estou mal informado), ele foi forçado a mendigar para comer (pois não podia vender as jóias), mas mesmo mendigando e fazendo tudo o que podia, seguiu de estômago vazio durante a maior parte do restante da viagem.
esp. - Não é incrível que não lhe tivessem roubado o seu certificado, mediante o qual ele seria admitido no Portão Celestial?
cris. - É incrível, mas de fato não o levaram. Contudo, os três não deixaram de fazê-lo por nenhuma astúcia do homem, pois estando Pequena Fé apavorado diante da chegada dos bandidos não tinha forças nem capacidade para esconder nada. Portanto foi mais pela piedosa providência do que por esforços dele que os ladrões perderam a oportunidade de tomar para si esse tesouro (1 Tm.1:14).
esp. - Mas para ele deve ter sido um consolo o fato de não lhe terem tomado essa preciosidade.
cris. - Talvez lhe viesse a servir de grande consolo, se a tivesse usado como deveria, mas quem me contou a historia disse que ele pouco usou esse tesouro durante o resto da viagem por causa do medo que lhe incutiu aquele assalto. Pequena Fé chegou mesmo a esquecer desse certificado durante grande parte do resto da jornada, além disso, sempre que se lembrava dele, encontrando consolo, novamente lhe assaltavam as lembranças da perda, e esses pensamentos engoliam tudo o mais.
esp. - Pobre coitado! Isso certamente era uma grande angústia para ele.
cris.- Angústia?! Grande angústia de facto! Mas também nós não sentiríamos o mesmo se tivéssemos a mesma sorte dele? Roubados e feridos e em lugar tão esquisito? E de admirar que não tenha morrido de angústia, o coitado! Contaram-me que ele passou praticamente todo o resto da jornada entre lamentos aflitos e amargurados. Também contava a todos que o alcançavam, ou que ele encontrava pelo caminho, onde fora roubado e como, quem eram os ladrões e o que levaram e que fora ferido quase mortalmente.
esp. - Mas é de admirar que as suas necessidades não o tenham feito vender ou empenhar algumas de suas jóias, para que assim tivesse com o que subsistir durante a viagem.
cris. - Você fala como quem traz a casca sobre a cabeça, até hoje. Pois em troca do que poderia empenhá-las, ou a quem as venderia? Naquela terra onde ele foi roubado, suas jóias nada valiam, nem queria ele alívio que pudesse advir disso. Além do mais, se lhe faltassem as jóias diante do portão da Cidade Celestial, certamente (e isso sabia muito bem) perderia o direito a qualquer herança ali e isso lhe seria pior do que o assalto e o aviltamento de dez mil ladrões.
esp. - Por que você está tão azedo, meu irmão. Esaú vendeu o direito de primogenitura por uma panela de guisado e esse direito era a sua maior jóia. Mas se ele o fez, por que Pequena Fé também não poderia fazê-lo?
cris. – Esaú, de facto, vendeu o direito de primogenitura, como também muitos outros e ao fazê-lo excluem-se da bênção maior, como o fez aquele infeliz. Mas é preciso fazer uma distinção entre Esaú e Pequena Fé e também entre os seus bens.
- O direito de primogenitura de Esaú – explicou Cristão – era típico, mas não as jóias de Pequena Fé. O estômago de Esaú era seu deus, mas esse não era o caso de Pequena Fé. Esaú entregava-se ao apetite da carne, mas não Pequena Fé. Além disso, Esaú nada conseguia enxergar além da satisfação dos seus desejos. "Estou a ponto de morrer", disse ele; "de que me aproveitará o direito de primogenitura?"
- Quanto a Pequena Fé, porém – continuou Cristão – embora fosse a sua sina não ter senão fé pequena, essa mesma fé o livrava de tais extravagâncias, fazendo-o valorizar as suas jóias a ponto de não querer vendê-las, como fez Esaú com o direito de primogenitura.
- Não se lê em parte nenhuma que Esaú tivesse fé, nem mesmo pequena – acrescentou ainda Cristão. – Portanto, onde só a carne domina (como acontece no homem que não tem fé para resistir), não admira que ele venda o direito de primogenitura, a alma e tudo o mais e isso para o próprio Diabo do inferno, pois esse tipo de homem é como a jumenta que não se pode dissuadir dos seus desejos. Quando os pensamentos se concentram (Jr.2:24] nas paixões, ele as satisfaz, custe o que custar.
- Pequena Fé, porém – concluiu Cristão – era de outra índole. Seus pensamentos se concentravam nas coisas do alto; seu modo de vida dependia de coisas espirituais, divinas. Logo, com que propósito um homem de tal índole venderia as suas jóias (se houvesse alguém que as comprasse) para encher a cabeça de coisas vãs? Daria o homem um centavo para encher o estômago de feno? Ou será possível convencer a rola a viver de carniça, como o corvo? Os infiéis, por paixões carnais, podem penhorar, hipotecar ou vender sem pestanejar o que têm ou são, mas os que têm fé, fé salvífica, mesmo pouca, esses não o farão. Aqui, portanto, está o seu erro, meu irmão.
esp. - E eu o admito. Porém a sua severa reflexão quase me deixou irritado.
cris. - Ora, nada fiz senão comparar você a um passarinho dos mais vivos, desses que correm para cá e para lá em trilhas virgens com a casca ainda grudada à cabeça. Mas deixe isso de lado e pense na questão em pauta e tudo ficará bem entre mim e você.
esp. – Mas, Cristão, acho que esses três homens não passam de uns covardes. Se não o fossem, você acredita que fugiriam, como o fizeram, ao perceber que vinha alguém pela estrada? Por que Pequena Fé não criou mais coragem? Ele poderia, acho eu, ter enfrentado os bandidos, cedendo quando já não houvesse remédio.
cris. - Que eles eram covardes, muitos já disseram, mas poucos pensam assim na hora da provação. Quanto à coragem, isso Pequena Fé simplesmente não tinha. De fato, meu irmão, acho que se você estivesse naquela situação também não ofereceria muita resistência. Na verdade, se agora que eles estão longe de nós você demonstra esse ânimo, talvez eles o forçassem a repensar a sua posição, caso aparecessem diante de ti, como aconteceu àquele homem.
- Considere o seguinte – disse-lhe Cristão – eles não passam de salteadores, que servem ao rei do abismo sem fundo. Se necessário, o próprio rei sai em defesa desses bandidos e sua voz é como a de um leão rugidor (1Ped.5:8). Eu mesmo me vi em situação semelhante à de Pequena Fé e foi horrível.
- Os três bandidos me cercaram – contou-lhe Cristão – e, quando tentei resistir como cristão, gritaram por seu senhor, que acudiu prontamente. Estive a ponto de, como diz o ditado, entregar a alma por um tostão, mas, graças a Deus, eu usava uma armadura reforçada. É... e mesmo protegido, achei difícil portar-me como homem. Só quem já experimentou essa batalha é capaz de dizer o que nos acontece nesse combate. Ninguém mais.
esp. - Bom, mas eles correram, veja você, só por supor que o tal Graça Abundante se aproximava.
cris. - É verdade. Eles muitas vezes fogem, tanto eles quanto o seu senhor, diante do mero surgimento de Graça Abundante. Mas não é de admirar, pois este é o defensor do Rei. Mas eu acho que você verá alguma diferença entre Pequena Fé e o defensor do Rei. Nem todos os súbditos do Rei são seus defensores e, quando postos à prova, não podem fazer proezas de guerra como ele. Será certo pensar que uma criancinha poderia vencer Golias como fez Davi? Ou que um pássaro tenha a mesma força de um boi? Alguns são fortes, outros fracos; alguns têm muita fé, outros têm pouca. Esse homem possuía pouca fé e portanto sucumbiu.
esp. - Quem dera Graça Abundante realmente tivesse aparecido ali para seu bem.
gris. - Se fosse ele, certamente não teria tido pouco trabalho. Pois devo lhe dizer que, mesmo sendo Graça Abundante exímio com as suas armas e sempre se saia bem quando se mantém no ataque, se eles conseguem superar-lhe as defesas – ainda que seja Covardia, Desconfiança ou o outro – a luta certamente se torna acirrada e eles poderão derrubá-lo. E quando um homem está no chão, que é que pode fazer?
- Quem examinar de perto o rosto de Graça Abundante – disse ele – verá as cicatrizes e os cortes que claramente demonstram o que acabei de dizer. Ouvi falar, certa vez, que ele chegou a dizer (e isso quando em combate): "Desesperamos até da própria vida" (2 Cor.1:8).
- Como é que esses velhacos corpulentos e seus capangas fizeram Davi gemer, lamentar e clamar? – Acrescentou Cristão. – Pois também Hemã e Ezequias, embora defensores no seu tempo, foram forçados a lutar desesperadamente quando atacados por esses homens e no entanto, apesar de todos os seus esforços, foram impiedosamente derrotados por eles. Pedro estava decidido a fazer tudo o que pudesse, mas, embora alguns digam que ele é o príncipe dos apóstolos, os homens tanto o pressionaram que afinal o fizeram temer uma pobre moça6.
- Além disso – continuou Cristão – a eles basta chamar para contar com o socorro do seu rei. Ele jamais deixa de ouvir e, se em algum momento se vêem em apuros, ele, sempre que possível, vai acudi-los. E dele se diz: "Se o golpe de espada o alcança, de nada vale, nem de lança, de dardo ou de flecha. Para ele o ferro é palha e o cobre, pau podre. A seta o não faz fugir; as pedras das fundas se lhe tornam em restolho. Os cacetes atirados são para ele como palha e ri-se do brandir da lança" (Jó 41:26-29).
- O que pode um homem fazer nessa situação? – Prosseguiu Cristão. – É verdade que, se um homem pudesse ter sempre à mão o cavalo de Jó, com destreza e coragem para cavalgá-lo, poderia fazer coisas notáveis. "Pois seu pescoço é revestido do trovão. Ele não temerá o gafanhoto. A glória das suas narinas é terrível. Escarva no vale, folga na sua força e sai ao encontro dos armados. Ri-se do temor e não se espanta; e não torna atrás por causa da espada. Sobre ele chocalha a aljava, a lança flamejante e o escudo. De fúria e ira devora o caminho, e não crê que seja o som da trombeta. Em meio ao clangor de trombetas, zomba: "Rá, rá" e fareja de longe a batalha, o trovão dos príncipes e o alarido" (Jó 39:19-25).
- Mas soldados como você e eu – disse Cristão – não devemos jamais querer encontrar o inimigo, nem nos vangloriar de como podíamos fazer melhor, quando ouvimos falar de outros que foram derrotados. Nem devemos nos deixar arrebatar pela ilusão da nossa própria virilidade, pois esses geralmente se saem pior quando postos à prova. Veja Pedro, que mencionei acima. Ele se ufanava, ah se não! Seus vãos pensamentos lhe fizeram dizer que seria o melhor, que com mais ardor defenderia o seu Mestre, mais que todos os homens. Mas quem mais do que ele foi oprimido e derrotado por esses vilões?
- Logo, quando ouvirmos falar desses roubos na estrada do Rei – advertiu Cristão – duas coisas nos cabe fazer: primeiro, sair de armadura, sem esquecer o escudo, pois foi por falta disso que aquele que tão vigorosamente atacou o Leviatã não pôde subjugá-lo. Se não tivermos o escudo, ele jamais nos temerá. Portanto nos disse o perito: "Acima de tudo, embraçai o escudo da fé, com o qual podereis apagar todos os dardos inflamados do maligno" (Ef.6:16).
- É bom também que peçamos protecção ao Rei – acrescentou Cristão – que ele mesmo vá connosco. Por isso Davi exultou mesmo estando no Vale da Sombra da Morte; e Moisés preferia morrer onde estava a dar sequer um passo a mais sem o seu Deus. Ah, meu irmão, se ele se dignar seguir connosco, que necessidade haverá de temermos dez mil que se lancem contra nós? Mas sem ele, "os altivos auxiliadores sucumbem entre os mortos" (SI 3:6, Jó 9:13, Is.10:4).
- Eu, de minha parte – contou-lhe Cristão -,já estive antes na luta e no entanto (por bondade daquele que é excelente) ainda estou vivo, como você pode ver. Porém não posso me vangloriar da minha virilidade. Feliz serei se não voltar a enfrentar tais ataques, embora tema não estarmos alheios a todo perigo. Contudo, como o leão e o urso ainda não me devoraram, espero que Deus também nos liberte dos próximos filisteus incircuncisos.
Então Cristão cantou:
Roubado por ladrões, pobre Pequena Fé!Mas aquele que crê e mais fé cultiva até,Esse decerto terá vitória virilE não só três vencerá, mas dez mil.
E assim lá iam eles e Ignorância os seguia. Caminharam até enxergar uma bifurcação, e os dois caminhos lhes pareciam igualmente rectos. Não sabiam, portanto, qual deles deveriam tomar. Por isso ali pararam para reflectir. E enquanto ponderavam qual caminho tomar, eis que um homem de tez sombria, mas coberto de manto muito claro, aproximou-se deles e perguntou por que estavam ali parados. Responderam que seguiam para a cidade Celestial, mas não sabiam qual dos caminhos tomar.
- Pois então sigam-me – disse o homem. – E para lá que também vou.
Assim o seguiram por uma trilha que os desviava do caminho. E pouco a pouco foram se afastando da cidade que tencionavam alcançar, tanto que logo rumavam para direcção oposta. Mesmo assim seguiam o desconhecido.
Sem que se dessem conta, o homem os fez cair numa rede, na qual tanto se enredaram que já não sabiam o que fazer; e o sombrio desconhecido deixou que o anto branco lhe caísse das costas. Viram então onde estavam. E ali ficaram a lamentar-se por algum tempo, pois não tinham como livrar-se da malha.
cris. - Agora me vejo em erro. Pois não nos aconselharam os pastores a ter cuidado com os aduladores? Hoje se cumpriu para nós o ditado do sábio: "O homem que lisonjeia a seu próximo arma-lhe uma rede aos passos" (Pv.29:5).
esp. - Também nos deram algumas orientações quanto ao caminho a seguir, para que o encontrássemos com mais segurança, mas também nos esquecemos de lê-las e não nos afastamos das trilhas do destruidor. Nisso Davi foi mais sábio do que nós, pois disse: "Quanto às acções dos homens, pela palavra dos teus lábios eu me tenho guardado dos caminhos do violento" (SI.17:4).
E assim se lamentavam emaranhados na rede. Por fim viram um Ser Resplandecente se aproximando deles, com um chicote de correia curta na mão. Chegando até onde estavam os dois, perguntou de onde vinham e o que faziam ali. Disseram-lhe que não passavam de pobres peregrinos e que seguiam para Sião, mas foram desviados do caminho por um sombrio desconhecido, vestido de branco, que os convidou a segui-los, afirmando que para lá também seguia. Falou então o estranho de chicote à mão:
- É um Adulador, um falso apóstolo, que se transformou num anjo de luz7. – Ele então rasgou a rede e os deixou sair. Mas disse: Sigam-me, para que eu os ponha de novo no caminho.
E os levou de volta à estrada da qual se haviam afastado para seguir o Adulador. Perguntou ainda:
- Onde passaram a noite?
- Com os pastores, nas Montanhas Aprazíveis.
Perguntou-lhes então se não haviam recebido dos pastores orientações sobre o caminho.
- Recebemos, sim.
- Mas quando estavam em dúvida, não se deram ao trabalho de ler essas orientações?
-Não.
- Por quê?
- Esquecemos.
- Mas os pastores não os aconselharam a tomar cuidado com o Adulador?
- Sim. Mas nem nos passou pela cabeça que esse homem de fala elegante fosse o tal.
Vi então no meu sonho que ele ordenou aos dois que se deitassem no chão. Deitados, castigou-os com força, para ensinar-lhes o bom caminho que deveriam trilhar. E, ainda a açoitá-los, disse:
- Eu repreendo e disciplino a quantos amo. Sê, pois, zeloso, e arrepende-te (Ap.3:19).
Feito isso, ele lhes ordena que retomem o caminho e fiquem bem atentos às outras orientações dos pastores. Os dois lhe agradeceram toda a bondade e, leves, voltaram ao caminho, cantando:
Vem, tu que andas pelo caminho, e observa,
Vê o que ganha quem se une à caterva!
Que se enreda em laço, se expõe ao relho,
Assim que esquece o bom conselho.
E fato que acabaram salvos, mas cuidado!
Pois saíram, sim, com o lombo lanhado.