Capítulo 10
AS AFLIÇÕES DE CRISTÃO NO VALE DA SOMBRA DA MORTE
Ora, ao final desse vale, havia outro chamado Vale da Sombra da Morte e Cristão precisava atravessá-lo também, pois o caminho rumo à Cidade Celestial passava por ali. Tal vale é lugar bastante desolado, e o profeta Jeremias assim o descreve: "Um deserto, uma terra de ermos e de covas, uma terra de sequidão e sombra de morte, terra em que ninguém [senão um cristão] transita, na qual não mora homem algum" (Jr.2:6).
Ora, ali Cristão sofreu provação pior do que sua batalha contra Apoliom, como o leitor verá na sequência.
Vi então no meu sonho que, ao chegar à fronteira da Sombra da Morte, Cristão encontrou ali dois homens, filhos dos que deram um relato negativo da boa terra (Nm.13:31), apressando-se em voltar. Cristão falou com eles assim:
- Aonde vão?
homens - Estamos voltando e é bom que trate de fazer o mesmo, se é que você preza a vida ou a paz.
cris. - Por quê? Qual o problema?
homens - Problema?! Seguíamos pelo mesmo caminho que você e fomos até onde nos permitiu nossa audácia. De fato quase não pudemos voltar, pois se avançássemos um pouco mais, não estaríamos aqui para trazer-lhe essas notícias.
cris. - Mas o que foi que encontraram?
homens. - Bom, estávamos quase no Vale da Sombra da Morte, mas por sorte, olhando adiante, vimos o perigo antes que tivéssemos de enfrentá-lo.
cris. - Mas o que foi que viram?
homens. — Você nem pode imaginar! O vale em si, que é escuro como o breu. Também vimos ali os diabretes, sátiros e dragões do abismo. Percebemos que lá de dentro do vale vinha um ruído contínuo de uivos e berros, como de gente sob padecimento indizível, que ali vivia em aflições e cadeias. Acima do vale pairam as desanimadoras nuvens da confusão. A morte também abre as asas sobre ele. Em suma, em toda parte só há coisas apavorantes, reina o caos mais completo.
cris. - Mesmo com tudo isso que vocês me dizem, acho que é este o meu caminho rumo ao refúgio almejado.
homens - Seja então o seu caminho. Nós não o escolheríamos.
E se despediram. Cristão seguiu seu caminho, a espada ainda à mão, pois temia ser atacado.
Vi então no meu sonho que, até onde se estendia o vale, havia à direita um fosso muito profundo, aquele para o qual os cegos conduzem os cegos em todas as eras, todos eles perecendo miseravelmente. E eis que à esquerda havia um pântano extremamente perigoso, no qual, mesmo se um bom homem cair, não acha apoio para se pôr de pé. Nesse pântano, o próprio rei Davi caiu certa vez, e sem dúvida nenhuma teria ali se afogado não houvesse sido ele resgatado pelo poderoso.
Também, o caminho era ali extremamente estreito e o bom Cristão mais do que nunca tinha de se ater a ele, pois quando nas trevas buscava evitar o fosso de um lado, quase mergulhava no lamaçal do outro e enquanto procurava escapar do lamaçal, não tomasse grande cuidado, certamente cairia no fosso. Assim avançava e ali ouvi que ele suspirava amargamente; pois, além dos perigos mencionados acima, a trilha era tão escura que muitas vezes, quando erguia o pé para dar um passo, não sabia onde ou sobre o que pisaria.
Mais ou menos pelo meio do vale, percebi abrir-se a própria boca do inferno, enquanto as margens do caminho permaneciam igualmente acidentadas. Pensou consigo Cristão:
- Que hei de fazer?
E as chamas e os fumos brotavam do abismo em abundância, incessantemente, com centelhas e sons horripilantes (coisas insensíveis à espada de Cristão, ao contrário de Apoliom), tanto que ele se viu forçado a embainhar a espada e refugiar-se noutra arma, chamada toda oração (Ef6:18). Então clamou e o clamor assim chegou aos meus ouvidos:
- Ó Senhor, te suplico, livra a minha alma (SI.116:4).
Assim caminhou longo trecho, embora as chamas dele se aproximassem cada vez mais. Também ouvia vozes aflitas e afãs de um lado e de outro, tanto que por vezes chegava a pensar que seria estraçalhado, ou pisoteado como barro pelas ruas. E ele viu essa visão apavorante e ouviu esses sons terríveis, durante quilómetros e quilómetros.
A certa altura, pensando ouvir um grupo de demónios vindo em sua direcção, parou e pôs-se a cismar no que melhor havia a fazer. Ás vezes lhe cruzava a mente a sombra da ideia de voltar. Depois pensava que já deveria estar a meio caminho do fim do vale; lembrava também que já havia vencido muitos perigos e que o risco de voltar talvez fosse muito maior do que o de avançar, portanto determinou-se a prosseguir. Todavia, os demónios pareciam se aproximar cada vez mais, mas quando já estavam quase sobre ele, clamou com voz muitíssimo intensa: - Andarei na força do Senhor Deus.
E recuaram, não se aproximando mais. Um detalhe não quero esquecer. Reparei que agora Cristão se achava tão confuso que já não conhecia a própria voz e foi assim que o percebi: justamente quando chegava diante da boca do abismo ardente, um dos malignos postou-se atrás dele e de modo subtil se aproximou, sugerindo-lhe aos sussurros muitas blasfémias repulsivas, que ele de fato julgou terem nascido dos seus próprios pensamentos. Isso perturbou mais Cristão do que tudo que enfrentara até ali, chegando mesmo a pensar que deveria blasfemar contra aquele que tanto amara antes. Se pudesse, porém, evitá-lo, não o faria, mas não teve discernimento para tapar os ouvidos nem para compreender de onde vinham essas blasfémias.
Depois de viajar por tempo considerável nessa situação desalentadora, julgou ouvir a voz de um homem, que, à frente dele, dizia: "Embora ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, pois tu estás comigo"
Então animou-se e isso por três motivos. Primeiro, porque deduziu disso que alguns que temiam a Deus estavam também nesse vale como ele.
Segundo, porque sentia que Deus estava com eles, mesmo naquela situação sombria e lúgubre; e por que não há de estar comigo, pensou ele, embora eu não o perceba em virtude dos obstáculos que caracterizam esse lugar.
Terceiro, porque esperava (se viesse a alcançá-los) ter companhia em breve. Por isso prosseguiu e chamou o que lhe estava à frente, mas esse não sabia o que responder, pois também se julgava só ali. E assim que raiou o dia, disse Cristão:
- Ele torna a sombra da morte em manhã (Am.5:8).
Ora, chegando a manhã, olhou para trás, não desejoso de voltar, mas para ver à luz do dia que perigos enfrentara sob trevas. Então viu mais nitidamente o fosso de um lado e o lodaçal do outro; também viu como era estreito o caminho que passava no meio desses dois; viu também os diabretes, sátiros e dragões do abismo; mas todos distantes, pois após o alvorecer eles não se aproximavam. No entanto, a ele se revelaram, segundo o que está escrito: "Das trevas manifesta coisas profundas e traz à luz a densa escuridade" (Jó12:22).
Ora Cristão ficou muito impressionado com a libertação de todos os perigos desse caminho solitário, perigos esses que, embora antes os temesse muito, agora via mais claramente, pois a luz do dia os tornava patentes.
Por essa hora nascia o sol e eis aí outra misericórdia para Cristão, pois o leitor deve notar que, embora a primeira parte do Vale da Sombra da Morte fosse perigosa, essa segunda parte que ele tinha pela frente era muito mais perigosa, se é que isso era ainda possível. Do lugar onde estava agora até o final do vale, o caminho estava tão cheio de ciladas, armadilhas, laços e redes de um lado e tão repleto de abismos, armadilhas, profundos buracos e íngremes desfiladeiros de outro, que, estivesse agora escuro tanto quanto durante a primeira parte do percurso, mesmo que ele tivesse mil almas todas elas certamente pereceriam.
Mas, como já disse, o sol acabava de nascer e Cristão exclamou: "Sua vela brilhou sobre minha cabeça e com a sua luz eu ando em meio às trevas".4 Foi sob luz, portanto, que alcançou o final do vale. Agora eu via no meu sonho que, no fim do vale, jaziam ossos, sangue, cinzas e corpos lacerados de homens, de peregrinos mesmo que por ali haviam passado anteriormente.
Enquanto eu cogitava qual seria a razão disso, divisei pouco adiante de mim uma caverna, onde dois gigantes, Papa e Pagão, habitaram outrora. Fora pelo poder e pela tirania deles que esses homens, cujos ossos, sangue, cinzas, etc. jaziam ali, acabaram cruelmente mortos.
Por tal lugar, porém. Cristão passou sem muito risco, diante do que fiquei um tanto surpreso. No entanto, soube depois que Pagão estava morto há muito tempo e quanto ao outro, embora ainda vivo, em virtude da idade avançada e também das muitas refregas acirradas que enfrentara nos anos mais jovens, estava tão louco e tanto o atacava o reumatismo que agora pouco mais fazia que sentar à entrada da caverna, roendo as unhas e rindo maliciosamente dos peregrinos que passavam, pois não conseguia se aproximar deles.
Vi, portanto, que Cristão seguia o seu caminho, embora ao ver o Velho sentado à entrada da caverna não soubesse o que pensar, pois este, mesmo sem poder persegui-lo, falou:
- Não vão se emendar, não é, enquanto mais de vocês não forem queimados vivos.
Mas Cristão seguiu calado, ensaiou um semblante tranquilo e passou dali incólume. Depois salmodiou:
Ó mundo de maravilhas! A vida conservei.
Em meio mesmo às angústias que aqui achei!
Abençoada a mão que me salvou disso tudo!
Trevas, demónios, inferno, pecado mais agudo
Me envolveram, me cercaram de facto
Enquanto nesse vale estive, chão ingrato.
Laços, abismos e ciladas rondavam o caminho
P’ra que eu, tolo inútil e avançando sozinho,
Fosse pego, enredado e lançado na escória.
Mas, hoje vivo, é a Jesus que devo toda glória.
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