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sábado, maio 13, 2006

Capítulo 12

OS FALSOS MESTRES


Vi depois no meu sonho que, enquanto os dois caminhavam, Fiel, ao olhar para o lado, viu a distância (pois nesse trecho havia espaço bastante para todos eles caminharem lado a lado) um homem chamado Tagarela. Era homem alto e sua aparência era um tanto melhor à distância que de perto. A esse homem Fiel dirigiu-se assim:
fiel - Ei amigo, para onde está indo? Para a terra celestial?
tag. - É, é para lá que eu vou.
fiel. - Óptimo. Então esperamos contar com a sua boa companhia.
tag. - É de muito bom grado que serei companheiro de vocês.
fiel.- Venha então, vamos seguir juntos, aproveitando o tempo para conversar sobre coisas proveitosas.
tag - Para mim nada é mais agradável que conversar sobre coisas boas, com vocês ou com qualquer outra pessoa. Alegro-me por ter encontrado gente que gosta de coisa tão excelente. Pois, para falar a verdade, poucos são aqueles que se dedicam a passar o tempo assim (quando em viagem), porquanto a maioria prefere falar de coisas vãs e isso me tem sido um tormento.
fiel. - De fato é algo a lamentar, pois que coisas há tão dignas do uso da língua e da boca na terra como as coisas do Deus dos Céus?
tag. - Muitíssimo me agrado de você, pois vejo que suas palavras são plenas de convicção e ouso até acrescentar: que pode haver de mais agradável e proveitoso que falar das coisas de Deus? Que coisas há tão agradáveis (isto é, se o homem acha algum prazer em coisas maravilhosas)? Por exemplo, se o homem se deleita em falar da história ou do mistério das coisas, ou se adora falar de milagres, prodígios ou sinais, onde encontrará registro tão prazeroso e tão belamente escrito, senão nas Sagradas Escrituras?
fiel. - Isso é verdade e tirar proveito dessas coisas na nossa conversa é justo o que desejamos.
tag. - Foi o que eu disse. Falar sobre isso é muitíssimo proveitoso, já que ao fazê-lo o homem pode alcançar conhecimento de muitas coisas, como da vaidade das coisas da terra e do benefício das coisas de cima. Em geral, porém mais especificamente por meio disso, o homem pode aprender a necessidade do novo nascimento, a insuficiência das nossas obras, a necessidade da justiça de Cristo, etc.
- Além disso – ainda falava Tagarela – por meio das conversas o homem pode aprender o que é arrepender-se, crer, orar e sofrer, entre outras coisas. Ainda através da conversa, o homem também pode aprender as grandes promessas e consolações do Evangelho, para o seu conforto. E mais, por meio disso o homem pode aprender a refutar falsas opiniões, a defender a verdade e também a instruir o ignorante.
fiel - Tudo isso é verdade e me alegro por ouvir de você essas coisas.
tag. - Ai de mim! A falta disso é a causa por que tão poucos compreendem a necessidade da fé e da obra da graça na sua alma para alcançar a vida eterna. Ignorando esse facto, vivem nas obras da lei, pelas quais o homem de modo nenhum pode alçar-se ao Reino dos Céus.
fiel - Mas, com a sua licença, o conhecimento celestial dessas coisas é dom de Deus. Homem nenhum as alcança por acção humanitária ou meramente por falar delas.
tag. - Tudo isso sei muito bem, pois o homem nada pode receber a menos que lhe seja dado do Céu. Tudo provém da graça, não das obras. Eu poderia citar cem passagens bíblicas que confirmam isso.
fiel - Pois muito bem. Mas em que tema iremos agora concentrar a nossa conversa?
tag. - No que você quiser. Eu falaria de coisas celestes ou terrenas, coisas morais ou evangélicas, coisas sagradas ou profanas, coisas passadas ou vindouras, coisas estranhas ou comuns, coisas mais essenciais ou circunstanciais, contanto que tudo se faça para proveito nosso.
Então Fiel se admirou e, aproximando-se de Cristão (pois este até aqui caminhava afastado dos outros dois), disse-lhe baixinho:
fiel. - Que companheiro magnífico encontramos! Certamente esse homem dará um excelente peregrino.
Cristão sorriu modestamente diante disso, dizendo:
cris. - Este homem de que tanto você se admira enganará com a língua vinte pessoas que não o conheçam.
fiel. - Então você o conhece?
cris. - Se o conheço?! Sim e ainda melhor do que ele mesmo se conhece.
fiel - Diga-me então que espécie de gente ele é.
cris. - Seu nome é Tagarela. Morava na nossa cidade. Admira-me você ser um estranho para ele. Só pode ser por causa do tamanho da nossa cidade.
fiel. - É filho de quem? E onde morava?
cris. - É filho de certo Bem Falar e morava na rua da Parola. Todos os que o conhecem lá na rua da Parola o chamam de Tagarela e apesar da sua língua de trapo, não passa de um coitado.
fiel - Ora, ele me parece um homem muito distinto.
cris. - Isso acontece àqueles que ainda não o conhecem, pois ele é melhor de longe; de perto é bem desagradável. Isso de você dizer que ele é um homem distinto, me faz lembrar o que já observei na obra do pintor cujos quadros parecem melhores de longe, mas de bem perto são mais desagradáveis.
fiel. - Inclino-me, porém, a pensar que você está apenas brincando, pois sorriu.
cris. - Longe de mim brincar com esse assunto (embora eu tenha mesmo sorrido), ou de acusar alguém falsamente. Pois vou lhe dizer mais algumas coisas sobre ele: esse homem gosta de qualquer companhia e de qualquer conversa; assim como conversou agora com você, também conversa nas tavernas. E quanto mais bebida tem na cachola, mais ele fala coisas fúteis. A religião não tem lugar no seu coração, nem na sua casa nem na sua conduta. Tudo o que ele tem reside na língua e sua religião é apenas fazer ruídos com ela.
fiel. - É mesmo? Então estou muito enganado a respeito desse homem.
cris. - Enganado? Pois pode estar certo disso. Lembre-se do provérbio: "Eles dizem e não fazem"; "mas o reino de Deus consiste não em palavra, mas em poder" (Mt.23:3; 1 Cor. 4:20). Ele fala de oração, de arrependimento, de fé e do novo nascimento, mas nada sabe senão falar disso. Frequentei a sua família e o observei em casa e na rua e sei que o que digo dele é verdade. Sua casa é tão vazia de religião quanto a clara do ovo é de sabor. Não há ali nem oração nem sinal de arrependimento do pecado. Sim, o bruto, ao seu modo, serve a Deus bem melhor do que ele.
- Ele – disse Cristão – é a própria nódoa, a própria desgraça, a própria vergonha da religião para todos os que o conhecem. Dificilmente se ouvirá um elogio a ele em toda a região da cidade onde ele mora. Assim diz a gente comum que o conhece: "santo na rua e diabo em casa". Sua pobre família bem o sabe. É tão bruto, tão insolente e tão insensato com os seus servos que eles nem sabem o que lhe fazer ou lhe dizer. - E Cristão continuou dizendo:
- Homens que têm alguma relação com ele dizem que é melhor lidar com os ímpios do que com ele, pois aqueles serão mais justos do que este. Esse Tagarela, se é que é possível, os suplanta na fraude e no logro. Além disso, ele cria os filhos para que sigam seus passos e, se ele percebe nalgum deles uma tola timidez (pois assim denomina o primeiro sinal da boa consciência), o chama de néscio e cabeça-dura e de modo nenhum lhe arruma trabalho nem fala dele elogiosamente diante dos outros. De minha parte, sou de opinião de que ele, por meio da sua vida ímpia, fez muitos tropeçar e cair e se Deus não o impedir, será ainda a ruína de muitos.
fiel - Pois bem, meu irmão: sou obrigado a acreditar em você, não só porque você diz que o conhece, mas também porque é como cristão que você retraía as pessoas. Não posso acreditar que você diz essas coisas por mal, mas sim porque são a mais pura verdade.
cris. - Se não o conhecesse mais que você, talvez dele tivesse a mesma impressão que você teve de inicie Sim e se esse retraio viesse somente de inimigos da religião, eu o consideraria calúnia (coisa que muitas vezes os homens maus fazem ao nome e à profissão dos bons homens). Mas de todas essas coisas, e ainda de muitas outras igualmente ruins, posso provar que ele é culpado e isso o sei por conhecimento directo. Ademais, os bons homens dele se envergonham. Não podem chamá-lo nem irmão nem amigo; a própria menção do seu nome entre os bons os faz corar, se o conhecem.
fiel - Bom, vejo que dizer e fazer são coisas diferentes e de agora em diante é melhor que eu note essa diferença.
cris. - De fato são duas coisas distintas e tão diversas quanto a alma e o corpo. Pois assim como o corpo sem a alma não passa de carcaça morta, também o falar vazio não passa de carcaça sem vida. A alma da religião é a prática: "A religião pura e sem mácula, para com o nosso Deus e Pai, é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundo" (Tg.1:27). Disso Tagarela não se dá conta; ele acha que ouvir e falar fazem um bom cristão e assim engana a própria alma.
- Ouvir – ensinava cristão – é somente a semeadura; falar não é suficiente para provar que o fruto já está de facto no coração e na vida. É bom que saibamos que no dia do juízo os homens serão julgados segundo os seus frutos, pois não lhes será perguntado: "Vocês acreditaram?", mas "Vocês foram praticantes ou meramente faladores?". E assim serão julgados. O fim do mundo se compara à nossa colheita e você sabe que os homens na ceifa só consideram o fruto; tampouco nada se pode aceitar que não seja da fé. Mas falo isso para lhe mostrar como será insignificante naquele dia a confissão de Tagarela.
fiel, - Isso me faz lembrar Moisés, quando ele determina as características do animal puro. Puro é o animal que tem casco fendido e rumina, não o que tem somente casco fendido ou o que somente rumina. A lebre rumina, mas é mesmo assim impura, pois não tem casco fendido. E de fato isso faz lembrar Tagarela; ele rumina, busca o conhecimento, rumina sobre a Palavra, mas não tem o casco fendido, não se aparta do caminho dos pecadores, pois, como a lebre, tem pé de cão ou urso e portanto é impuro.
cris. - Você revelou, pelo que sei, o verdadeiro sentido evangélico desses textos e acrescentarei ainda uma coisa. Paulo chama alguns homens, sim e os grandes faladores também, de "bronze que soa" e "címbalo que retine", ou seja, como ele expõe noutra passagem, "instrumentos inanimados que emitem sons" (1 Cor.13:1,14:7). Coisas sem vida, isto é, sem a verdadeira fé e graça do Evangelho, e consequentemente coisas que jamais serão postas no Reino dos Céus entre os que são filhos da vida, embora o som das suas palavras seja como a língua ou a voz de um anjo.
fiel - Bom, não gostei tanto da companhia dele de início, mas agora estou realmente farto dela. O que faremos para nos livrar dele?
cris. - Acate o meu conselho e faça como eu mando. Você verá que ele também logo estará farto da sua companhia, a não ser que Deus toque o coração dele e o converta.
fiel. - O que você quer que eu faça?
cris. - Pois vá ter com ele e trave uma conversa séria sobre o poder da religião e lhe pergunte directamente (depois que ele tiver aprovado as suas palavras, pois certamente o fará) se isso está arraigado no coração, na casa ou na conduta dele
Então Fiel foi novamente falar o m Tagarela:
fiel. - Ora, ora, como estão as coisas?
T ag. - Muito bem, obrigado. Acho que deveríamos aproveitar o momento e travar uma longa conversa.
fiel - Pois se é da sua vontade, comecemos já. E como você me cedeu o direito de fazer a pergunta inicial, seja esta: como é que a graça salvífica de Deus se revela, quando no coração do homem?
tag. - Percebo que nossa conversa deve versar sobre o poder das coisas. Bom, eis aí uma pergunta muito boa e certamente é de bom grado que a respondo. E aqui vai a minha resposta, em breves palavras: primeiro, se a graça de Deus está no coração, lá ela provoca um grande clamor contra o pecado. Em segundo lugar...
fiel. - Espere, por favor; ponderemos um argumento por vez. Acho que seria melhor dizer que ela se revela inclinando a alma a detestar o pecado.
tag. - Ora, que diferença há entre clamar contra e detestar o pecado?
fiel. - Ah! Uma grande diferença. O homem pode clamar contra o pecado ou a astúcia, mas não pode detestá-lo senão em face de uma piedosa antipatia diante dele. Já ouvi muitos clamarem contra o pecado no púlpito, gente que no entanto o abriga muito bem no peito, na casa e na conduta. A senhora de José clamou com voz bem alta, como se fora muito santa, mas apesar disso de bom grado teria cometido com ele o pecado. Alguns clamam contra o pecado como a mãe grita com a filha no colo, chamando-a atrevida e malcriada, para logo depois abraçá-la e beijá-la.
tag. - Percebo que você espreita a ocasião de me surpreender em erro.
fiel. - Não, não. Pretendo apenas esclarecer bem as coisas. Mas qual é a segunda coisa pelo que você provaria a revelação da obra da graça no coração?
tag. - Um grande conhecimento dos mistérios do Evangelho.
fiel - Esse sinal deveria ter vindo primeiro, mas primeiro ou último, é também falso. Pode-se alcançar conhecimento, grande conhecimento, dos mistérios do Evangelho, sem no entanto haver obra nenhuma da graça na alma, pois mesmo se o homem possui todo o conhecimento, ainda assim pode nada ser, e consequentemente não ser filho de Deus. - Fiel continuou:
- Quando Cristo disse: "Entendestes todas estas coisas?" e os discípulos responderam: "Sim", ele acrescentou: "Bem-aventurados sois se as praticardes" (Mt.13:51, João 13:17). Ele não bendiz o conhecimento deles, mas a prática, pois há conhecimento alheio à acção: aquele que conhece a vontade do Mestre e não a põe em prática.
- O homem – disse-lhe ainda Fiel – pode ter o mesmo conhecimento que um anjo, sem no entanto ser cristão. Sendo assim, o seu sinal não é verdadeiro. Na realidade, conhecer é algo que agrada a faladores e fanfarrões, mas é a prática que agrada a Deus. Não que o coração possa ser bom sem conhecimento, pois sem isso o coração nada é. Há portanto conhecimentos e conhecimentos: o conhecimento que se funda na mera especulação e o conhecimento acompanhado da graça da fé e do amor, que leva o homem a fazer, de coração, a vontade mesma de Deus. O primeiro desses serve ao falador, sem o segundo o verdadeiro cristão não se contenta. "Dá-me entendimento e guardarei a tua lei; de todo l oração a cumprirei" (SI.119:34).
tag - Você novamente espreita a ocasião de me surpreender em erro. Isso não é edificante.
fiel.. - Bom, se é da sua vontade, proponha outro sinal de como essa obra da graça revela a sua presença.
Tag. - Não, pois vejo que não concordaremos.
fiel. - Bom, se não quer fazê-lo, permita-me então propor um sinal.
Tag. - Você tem toda a liberdade.
fiel. - A obra da graça na alma se revela quer àquele que a tem quer a observadores. Aquele que a tem, assim se revela: dá-lhe convicção do pecado, especialmente da corrupção da sua natureza e do pecado da descrença (por conta do qual ele certamente será condenado, se não encontrar misericórdia aos olhos de Deus pela fé em Jesus Cristo).
- Essa visão e percepção das coisas – argumentou Fiel – provocam nele pesar e vergonha pelo pecado. Além disso, encontra revelado em si o Salvador do Mundo e a absoluta necessidade de apegar-se a ele por toda a vida. E na vida encontra a fome e a sede às quais se fez a promessa. Ora, segundo a força ou a fraqueza da sua fé no Salvador é a sua alegria e a sua paz, o seu amor e a sua santidade, como também o desejo de mais conhecê-lo e também de servi-lo neste mundo.
- Mas embora eu diga que isso assim se revela nele – continuou ainda Fiel – é raro, porém, o homem capacitado a concluir que isso é obra da graça, pois suas corrupções e sua razão distorcida fazem a mente avaliar erroneamente a questão. Portanto do possuidor dessa obra exige-se juízo bastante sensato para que possa concluir, com firmeza, que se trata da obra da graça.
- Aos outros – disse-lhe Fiel – revela-se do seguinte modo. Primeiro, por uma confissão experimental da sua fé em Cristo. Segundo, por uma vida coerente com essa confissão, ou seja, vida de santidade: santidade no coração, santidade na família (se ele tiver família) e santidade na conduta neste mundo.
- Em geral – concluiu Fiel – isto lhe ensina a detestar no íntimo, em segredo, o pecado e a si mesmo; ensina-lhe a extirpá-lo da sua família e a promover a santidade no mundo, não por palavras somente, como paz o hipócrita ou o tagarela, mas pela submissão prática na fé e no amor ao poder da palavra. E agora, meu caro, se você tem algo a contrapor a essa breve descrição da obra da graça e também à sua revelação, por favor o faça. Caso contrário, peço permissão para propor uma segunda pergunta.
tag. - Não, meu papel agora não é objectar, mas ouvir. Que venha, portanto, a segunda pergunta.
fiel. - Ei-la: você porventura evidencia hoje a primeira parte da descrição da obra da graça? E será que a sua vida e conduta a testificam? Ou será que a sua religião se funda somente na palavra e na língua e não em actos e verdade? Peço que, caso se disponha a me responder essa pergunta, nada mais diga senão o que saiba que o Deus lá do alto confirmará com um "Amém", e também nada a não ser aquilo em que a sua consciência possa justificá-lo. Porque não é aprovado quem a si mesmo se louva e, sim, aquele a quem o Senhor louva (2Cor.10:18). Além disso, dizer que sou assim ou assado, quando a minha conduta e todos os meus vizinhos me dizem que minto, isso é grande impiedade.
Tagarela então começou a corar, mas recobrou-se e replicou:
tag. - Você agora fala de experiência, de consciência, de Deus e de apelos a Deus em busca de justificação dos seus argumentos. Confesso que não esperava esse tipo de discurso, nem estou disposto a responder tais perguntas, pois não me julgo obrigado a fazê-lo, a menos que você se tenha arrogado a tarefa de catequizar-me. Embora você até deva agir assim, eu posso me recusara fazer de você meu juiz. Mas rogo que me responda: por que me faz essas perguntas?
fiel - Porque julguei que você estava disposto a conversar e porque não sabia que você não fazia sequer ideia do assunto. Além do mais, para lhe dizer a verdade, já ouvi falar de você. Ouvi que você é homem cuja religião se funda nas palavras e que a sua conduta desmente a sua confissão, confissão que é somente da boca para fora.
- Dizem que você é uma nódoa entre os cristãos – repreendeu-o ainda Fiel – e que a sua conduta impiedosa só faz piorar a religião; que alguns já tropeçaram por causa dos seus caminhos iníquos e que ainda muitos correm o risco de destruição por sua causa. A sua religião anda de mãos dadas com a taverna, a cobiça, a impureza, a injúria, a mentira, a vã companhia, etc. Vale para você o provérbio que se diz de uma meretriz: assim como ela é vergonha para todas as mulheres, também você é vergonha para todos os crentes.
tag. - Já que você não hesita em emitir conceitos e em julgar tão cruamente assim, só posso concluir que estou diante de um homem rabugento e melancólico, com quem é impossível conversar. Portanto, adeus.
Logo Cristão se aproximou e disse ao seu irmão:
cris. - Eu lhe disse o que aconteceria. Suas palavras não iriam jamais concordar com as paixões desse homem. Ele prefere abandonar a sua companhia a reformar a vida dele e ele se foi, como eu previa. Deixe que vá. Quem perde é somente ele mesmo, ninguém mais. Tagarela nos poupou o trabalho de nos afastarmos dele, pois se ele mantivesse a mesma conduta, como suponho que faria, certamente seria um espinho entre nós. Além disso, diz o apóstolo: "Afasta-te dessa gente" (1Tm6:5).
fiel. — Mas estou contente por termos travado essa breve conversa com ele. Quem sabe até venha a ponderar novamente a questão. Porém, fui sincero com ele, e portanto estou livre do seu sangue, se ele vier a perecer.
cris. - Bem você fez ao falar assim tão francamente com ele. Hoje é difícil encontrar quem aja em relação aos homens com tamanha fidelidade e é isso que de facto torna a religião tão repugnante para muitos. Pois são esses tolos tagarelas, cuja religião é só da boca para fora, gente debochada e vã na sua conduta, que (sendo assim mesmo admitidos na comunhão dos piedosos) fazem tropeçar o mundo, mancham o cristianismo e entristecem os sinceros. Quisera que todos os homens os tratassem assim, como você o fez. Eles ou se ajustariam mais à religião, ou então a companhia dos santos lhes seria ardente demais
Então disse Fiel:
Como Tagarela pavoneava-se no início!
E com que coragem cuspia o bulício!
Como supunha vexar todo homem são!
Porém Fiel falou da obra do coração.
E ele minguou como no céu a lua;
Como também todo insincero recua.
Assim foram conversando sobre o que haviam visto pelo caminho e o percurso tornou-se menos pesado, pois, não fora isso, sem dúvida lhes seria tedioso, já que atravessavam um deserto.