VOCÊ NÃO ESTÁ NA PÁGINA PRINCIPAL. CLIQUE AQUI PARA RETORNAR





sábado, maio 13, 2006

Capítulo 11

O ENCONTRO DE CRISTÃO E FIEL


Cristão continuou seguindo seu caminho e alcançou uma pequena subida, que fora posta ali de propósito, para que os peregrinos pudessem enxergar o que os esperava adiante. Ele subiu e, olhando para a frente, viu Fiel a distância e gritou-lhe:
- Ei, ei, alô! Espere aí, que agora você tem companhia.
Fiel olhou para trás e Cristão novamente lhe gritou:
- Espere aí, espere até eu alcançar você!
- Não, minha vida corre perigo e o vingador de sangue está atrás de mim.
Cristão se comoveu e, redobrando o esforço, rapidamente o alcançou. De fato chegou até a passá-lo, de modo que o último era agora o primeiro. Riu-se então, cheio de si, por ter conseguido tomar a dianteira ao seu irmão; mas calhou que, sem olhar onde pisava, de súbito tropeçou e caiu e não conseguiu se levantar enquanto Fiel não chegou para ajudá-lo.
Vi depois no meu sonho que seguiram os dois juntos, demonstrando muito carinho um pelo outro e conversando animadamente sobre todas as coisas que lhes haviam acontecido durante a peregrinação. Cristão foi quem tomou a iniciativa:
- Honrado e amado irmão Fiel, fico feliz por ter alcançado você e por ter Deus temperado de tal modo nosso espírito que agora podemos seguir como companheiros por caminho tão aprazível.
fiel. - Pensei, caro amigo, que teria a sua companhia já desde a saída da nossa cidade, mas, na verdade, você partiu antes de mim; por isso me vi forçado a percorrer todo esse trecho sozinho.
cris. - Quanto tempo você ficou na Cidade da Destruição antes de sair em peregrinação depois de mim?
fiei. - Até não suportar mais, pois depois da sua partida só se falava que nossa cidade, breve, seria arrasada pelo fogo vindo do céu.
cris. - O quê? Isso eram seus vizinhos que falavam?
fiel. - É. Por algum tempo todo mundo só falou nisso.
Cris. - E só você, ninguém mais, saiu para fugir do perigo?
fiel — Embora, como já disse, muito se falasse sobre o assunto, não acho que eles acreditassem realmente nisso. Pois no calor da discussão, ouvi alguns zombando de você e da sua viagem desesperada (pois era assim que chamavam a sua peregrinação). Mas eu acreditei e ainda acredito, que o fim da nossa cidade será com fogo e enxofre lá de cima, portanto também eu resolvi fugir.
cris. - Não ouviu nada sobre o meu vizinho Volúvel?
fiel. - Ouvi sim, Cristão. Ouvi dizer que ele seguiu você até o Pântano do Desânimo, onde, segundo comentaram alguns, ele acabou caindo, só que ele não queria que se soubesse que isso havia acontecido. Mas tenho certeza de que ele ficou totalmente emporcalhado com aquela sujeira toda.
cris. - O que os vizinhos disseram para ele?
fiel - Desde a sua volta ele era alvo de muita zombaria e isso entre gente de toda espécie. Alguns ainda escarnecem dele e o desprezam e poucos lhe oferecem trabalho. Hoje ele está sete vezes pior do que se nunca tivesse saído da cidade.
cris. - Mas por que todos se viraram assim contra ele, se também desprezam o caminho que ele abandonou?
fiel - O povo diz: "Enforquem-no. Ele é vira-casaca. Não foi fiel à sua convicção". Acho que Deus chegou mesmo a incitar inimigos que o vaiassem, para fazer dele um exemplo, por ter abandonado o caminho.
cris. - Não conversou com ele antes de partir?
fiel - Cheguei a vê-lo certa vez na rua, mas ele me lançou um olhar esquivo de longe, como quem está envergonhado do que fez. Não conversei com ele.
cris. - Bom, logo que parti, tinha esperança nesse homem, mas agora temo que vá perecer na destruição da cidade, pois a ele aconteceu conforme o sábio provérbio: o cão voltou ao seu próprio vómito; e a porca lavada voltou a revolver-se no lamaçal (2 Pé 2:22).
fiel - Também tenho os mesmos temores em relação a ele. Mas quem é que pode evitar o que deve acontecer?
cris. - Ora, bom vizinho Fiel, melhor é deixá-lo para lá e falar de coisas mais urgentes para nós. Diga-me: com o que você se deparou no caminho até aqui? Pois seria um verdadeiro prodígio se ainda não houvesse encontrado algumas coisas admiráveis.
Fiel - Escapei do pântano, pois vi você cair ali e cheguei a porta sem passar por esse perigo, só encontrei certa mulher chamada Libertina, que procurava alguma forma de me prejudicar.
cris. - Óptimo que tenha escapado à sua rede. José muito sofreu nas mãos dela, mas escapou como você; só que isso quase lhe custou a vida. Mas o que ela fez a você?
Fiel - Você não pode imaginar (a não ser que já tenha experiência nisso) como a língua dessa mulher é sedutora. Ela insistiu muito comigo para que eu a acompanhasse, prometendo-me toda sorte de prazeres.
cris. - Certamente ela não lhe prometeu o prazer da boa consciência.
fiel. - Você sabe o que eu quero dizer: todo prazer carnal e mundano.
cris. - Graças a Deus você escapou dela. Os odiosos aos olhos do Senhor cairão na vala dessa mulher.
fiel - Não, não sei se dela realmente escapei ou não.
cris - Por quê? Não creio que você tenha cedido aos desejos dela...
fiel - Não, não me corrompi, pois lembrei-me de um texto antigo que havia lido, que diz: "Os seus pés descem à morte; os seus passos conduzem-na ao inferno" (Pv.5:5). Então fechei os olhos, pois não queria me deixar enfeitiçar por seus olhares. Daí ela me insultou, mas segui o meu caminho.
cris. - Não sofreu nenhum outro ataque pelo caminho?
fiel - Chegando ao sopé do morro chamado Dificuldade, encontrei um homem bem idoso, que me perguntou quem eu era e para onde ia. Eu lhe disse que era um peregrino que seguia rumo à Cidade Celestial. Disse-me então o velho: "Você parece ser um homem honesto. Será que não se disporia a ficar comigo, pelo salário que lhe pagarei?" Perguntei então seu nome e onde ele morava. Respondeu-me que se chamava Adão, o primeiro e que morava na cidade do Engano. Eu lhe indaguei sobre o trabalho e que salário ele pagaria. Ele respondeu que o trabalho eram muitos prazeres e que, como salário, eu afinal seria o seu herdeiro.
- Perguntei ainda – continuou Fiel – o que havia em sua casa e que outros servos ele possuía. Respondeu que em sua casa havia todos os deleites do mundo e que seus servos eram os que ele mesmo gerava. Pedi que me dissesse então quantos filhos tinha. Disse-me ele que só tinha três filhas: Concupiscência da Carne,Concupiscência dos Olhos e Soberba da Vida (1João 2:16) e que eu poderia me casar com todas elas, se quisesse. Perguntei-lhe, finalmente, quanto tempo ele gostaria que eu morasse com ele. Respondeu-me: enquanto ele mesmo vivesse.
cris. - Bom e a que conclusão chegaram você e o velho, afinal?
fiel - Ora, de início me senti até inclinado a acompanhar o homem, pois achei que falava belas palavras, mas reparando a sua testa enquanto conversava com ele, li a seguinte frase: "Despe-te do velho homem com os seus feitos" (Cl.3:9)
cris. - E então?
fiel. - Então me veio queimando na mente a ideia de que, apesar de tudo o que ele disse e por mais que me bajulasse, quando me alojasse na sua casa, me venderia como escravo. Então pedi que não me dissesse mais nada, pois não me aproximaria da porta da sua casa. Diante disso ele me injuriou e me disse que enviaria atrás de mim alguém que me tornaria o caminho amargo para a alma. Aí virei-me para me afastar dele, mas, assim que o fiz, senti que ele me agarrava, dando-me um puxão tão forte que pensei que havia arrancado um pedaço de mim. Isso me fez clamar:
"Ó homem desventurado!" Então segui o meu caminho morro acima. Já havia subido a metade da encosta, quando olhei para trás e vi alguém me seguindo, ligeiro como o vento e ele me alcançou bem no lugar onde fica o banco.
cris. - Foi bem onde eu me sentei para descansar, mas o sono me venceu. Ali perdi este rolo que trago junto ao peito.
fiel - Mas ouça-me, bom irmão meu. Assim que o homem me alcançou, senti uma forte pancada, que me derrubou no chão e ali fiquei como morto. Quando eu voltava a mim, ainda tonto, perguntei por que fizera aquilo. Disse que era por causa da minha secreta atracção pelo primeiro Adão e dizendo isso, me desferiu outro golpe fortíssimo no peito, estirando-me no chão de costas. Assim, fiquei ali caído de novo aos seus pés como morto e, quando voltei novamente a mim, clamei misericórdia. Ele, porém, disse: "Não sei o que é misericórdia". E novamente me atingiu. Certamente teria dado cabo de mim, mas então alguém chegou e mandou que parasse.
cris. - Quem foi que mandou que ele parasse?
fiel — Não o reconheci de início, mas vi as cicatrizes nas mãos e no lado e concluí que era nosso Senhor. Então me pus de pé e subi o resto da encosta.
cris. - O homem que o golpeou era Moisés. Ele a ninguém poupa e tampouco sabe demonstrar misericórdia para com aqueles que violam a sua lei.
fiel - Eu bem o sei. Não foi a primeira vez que me encontrei com ele. Foi ele quem me procurou, quando eu ainda morava na segurança do lar e me disse que queimaria a minha casa sobre a minha cabeça se eu lá permanecesse.
cris. - Mas você viu a casa que fica lá no cume do morro, do lado em que Moisés o alcançou?
fiel - Vi e vi também os leões antes de chegar até lá. Quanto a eles, acho que estavam dormindo, pois era por volta do meio-dia e como tinha ainda boa parte do dia pela frente, passei pelo porteiro e desci o morro.
cris. - Ele de fato me disse que o viu passar, mas que pena que você não visitou a casa, pois eles lhe teriam mostrado tantas raridades que você dificilmente se esqueceria delas até o dia da sua morte. Mas me diga: encontrou alguém no Vale da Humildade?
fiel - Sim, encontrei com certo Descontente, que quis me convencer a voltar com ele. Disse ele que o vale não tinha uma gota sequer de honra e que passar ali era desobedecer a todos os meus amigos: Orgulho, Arrogância, Presunção, Glória Secular e outros, que, segundo ele, ficariam muitíssimo ofendidos se eu fosse estúpido a ponto de atravessar aquele vale.
cris. - Bom e o que você lhe respondeu?
fiel. - Eu disse que, embora todos esses que ele mencionara pudessem até alegar parentesco comigo e com razão (pois de fato eram meus parentes segundo a carne), desde que eu me tornara peregrino, eles me rejeitavam, como também eu os rejeitava, portanto eles para mim eram como se jamais tivessem sido do meu sangue. Quanto ao vale, disse-lhe ainda que ele havia dado um panorama bastante enganador da coisa, pois diante da honra vai a humildade e a altivez do espírito precede a queda (Pv.18:12, 16:18). Portanto eu disse que preferia atravessar o vale rumo à honra que os mais sábios tanto valorizam a escolher aquilo que ele estimava mais digno do nosso afecto.
cris. - Não encontrou mais nada naquele vale?
fiel. - Encontrei ainda Vergonha. De todos os homens que encontrei na minha peregrinação, ele, acho eu, tem o nome errado. Os outros até se continham diante de alguma argumentação (ou outra coisa qualquer), mas esse Vergonha, cínico que era, simplesmente não parava de falar.
cris. - É mesmo? E o que ele lhe falou?
fiel - Ora, argumentou contra a própria religião. Disse que para o homem era lamentável, vil e desprezível preocupar-se com religião. Falou que boa consciência não era coisa de homem e que vigiar as palavras e os caminhos para se abster da intimidadora liberdade com que se acostumam os espíritos mais corajosos da época, era tornar-se alvo de escárnio.
- Contrapôs também – contou Fiel – que poucos dos poderosos, ricos ou sábios já concordaram com a minha opinião e que nenhum deles o fez senão quando se deixou convencer pela tolice, dispondo-se voluntariamente, por falta de juízo, a arriscar a perder tudo por aquilo que ninguém sabe o quê. Ridicularizou ainda o estado vil e humilhante da maioria dos peregrinos e também sua ignorância da época em que vivem e sua falta de compreensão de toda ciência natural.
- É... e também me disse palavras semelhantes sobre muitas outras coisas que não menciono aqui – observou ainda Fiel. – Que era vergonha choramingar e lamentar-se diante de um sermão e vergonha também voltar suspirando e gemendo para casa; que era vergonhoso pedir perdão ao próximo por pequenas faltas, ou restituir aquilo que tirei de alguém. Disse, ainda, que a religião faz o homem estranho aos nobres por causa de uns poucos vícios (aos quais ele deu nomes mais distintos), e o faz honrar e respeitar os desprezíveis, por causa da mesma fraternidade religiosa. "E não é isso uma vergonha?", perguntou ele.
cris - E o que você lhe respondeu?
fiel. - O que lhe respondi? Por um momento fiquei sem saber o que dizer. Ele me deixou tão nervoso que o sangue me subiu ao rosto. Sim, o tal Vergonha me fez isso e quase me dominou, mas depois, afinal, ponderei que aquilo que é elevado entre os homens é abominação diante de Deus (Lc.16:15). E reflecti novamente: o tal Vergonha me diz o que são os homens, mas nada fala sobre quem é Deus e o que é a sua Palavra.
- Ponderei, ainda – disse Fiel – que no dia do juízo não seremos condenados à morte ou à vida conforme os espíritos intimidadores do mundo, mas conforme a sabedoria e a lei do Altíssimo. Portanto, pensei, o que Deus diz é melhor, embora todos os homens do mundo lhe sejam contrários. Vendo então que Deus prefere a sua religião, vendo que Deus prefere a boa consciência, vendo que aqueles que se fazem loucos pelo Reino dos Céus são os mais sábios e que o pobre que ama a Cristo é mais rico do que o maior dentre os homens que o odeia, mandei Vergonha embora.
- Fiel ainda continuou: Disse-lhe: "Tu és inimigo da minha salvação. Devo então te dar guarida contra a vontade do meu Senhor soberano? Como então poderia eu olhar nos olhos dele quando da sua vinda? Se agora me envergonho dos seus caminhos e servos, como posso esperar a bênção?". Esse tal Vergonha, porém, era de fato um vilão audacioso. Quase não consegui afastá-lo de mim, pois ele me assombrava e continuamente me sussurrava nos ouvidos uma ou outra das enfermidades que acometem a religião. Mas afinal eu lhe disse que em vão tentava me convencer, pois, as coisas que ele desdenhava, nelas eu via a maior glória. E assim, finalmente, me livrei desse importuno. Depois de afastá-lo de mim, cantei:
As provações que vêm ao homem leal,Obediente ao chamado celestial,São variadas e à carne adequadas,E voltam, voltam sempre renovadas;
Tanto que agora ou quem sabe lá no futuroTalvez sejamos vencidos ou expulsos no duro.Ah, que os peregrinos estejam atentos entãoE a si mesmo renunciem, homens que são.
cris. - Vejo com alegria, meu irmão, que você resistiu a esse vilão com muita coragem, pois dentre todos, como você já disse, acho que ele tem o nome errado. Ele é atrevido a ponto de nos seguir pelas ruas, tentando nos cobrir de vergonha perante todos os homens, ou seja, nos deixar envergonhados do que é bom. Mas não fosse ele audacioso, jamais tentaria fazer o que faz. Portanto, devemos resistir a ele, afinal, não obstante todas as suas intimidações, ele exalta os loucos, e ninguém mais. Os sábios herdarão a glória, disse Salomão, mas a vergonha será a exaltação dos loucos (Pv.3:35).
fiel. — Acho que devemos clamar auxílio contra a vergonha àquele que nos quer valentes pela verdade na terra.
cris. - Você está certo. Mas não encontrou ninguém mais naquele vale?
fiel. - Não, eu não, pois o sol me acompanhou durante todo o resto da travessia desse vale, como também do Vale da Sombra da Morte.
cris. - Que óptimo, então! Mas para mim as coisas se deram de outro modo. Logo que entrei naquele vale, tive por longo tempo um terrível combate contra um demónio maléfico chamado Apoliom. Cheguei mesmo a pensar que ele me mataria, especialmente quando me derrubou e me esmagou contra o chão, querendo me despedaçar, pois quando me atingiu, a espada me voou da mão. Ele já tinha como certa a minha morte. No entanto, clamei a Deus, que me ouviu e me libertou de todas as minhas aflições
- Depois entrei no Vale da Sombra da Morte – contou Cristão – avançando sem luz durante quase metade do caminho. Pensei diversas vezes que ali morreria, mas afinal o dia rompeu, o sol surgiu e então o resto do caminho foi muito mais fácil e tranquilo.