VOCÊ NÃO ESTÁ NA PÁGINA PRINCIPAL. CLIQUE AQUI PARA RETORNAR





sábado, maio 13, 2006

Capítulo 7

CRISTÃO SOBE O DESFILADEIRO DA DIFICULDADE



Vi então no meu sonho que Cristão prosseguiu até afinal chegar a um vale, onde divisou, ao largo do caminho, três homens profundamente adormecidos, com grilhões nos tornozelos. O nome de um deles era Simplório; outro chamava-se Indolência e o terceiro, Presunção.
Cristão, vendo-os deitados assim, aproximou-se deles para ver se – quem sabe – os acordava. E, então, bradou:
- Vocês acaso são como os que dormem no alto do mastro? (Pv.23:34). Pois o mar Morto está debaixo de vocês, abismo sem fundo. Despertem, portanto, e venham; se se mostrarem dispostos, também possa ajudá-los a livrar-se das cadeias. Se aquele que espreita como leão rugidor passar por aqui, certamente vocês serão presa fácil das suas garras (Ef.5:8).
Ouvindo isso, abriram os olhos e responderam assim:
- Não vejo perigo — disse Simplório.
- Quero dormir só um pouco mais — falou Indolência.
- Toda pipa deve ficar de pé sobre o próprio fundo; que outra resposta devo dar-lhe?
E assim voltaram a dormir e Cristão seguiu caminho1. Perturbou-se, porém, ao pensar que os homens expostos a tal perigo pudessem estimar tão pouco a bondade daquele que tão graciosamente lhes oferecia auxílio, tanto por despertá-los como por aconselhá-los, oferecendo-se também para ajudá-los a livrar-se dos grilhões. Estando Cristão ainda ali, preocupado, vislumbrou dois homens pulando o muro pelo lado esquerdo do caminho estreito; e o alcançaram, pondo-se ao lado dele. O nome do primeiro era Formalista e o segundo chamava-se Hipocrisia. Assim, como eu já disse, dele se aproximaram e Cristão pôs-se a conversar com eles:
cris. — De onde vêm os cavalheiros, e para onde vão?
form.e hip. — Nascemos na Terra da Vanglória e vamos louvar no monte Sião.
cris. - Por que não vieram pela porta que fica no começo do caminho? Os senhores porventura não sabem que está escrito que aquele que entra, não pela porta, mas sobe por outra parte qualquer, é ele mesmo ladrão e salteador? (João 10:1).
form.e hip - Soubemos que toda a gente daqui achava que ir até a porta só para entrar era perda de tempo e que portanto a maneira habitual era tomar um atalho e pular o muro, como eles já haviam feito.
cris. - Mas, violando assim a vontade revelada do Senhor da cidade para a qual seguimos, será que ele não os terá como transgressores?
form. e hip. - Disseram-lhes que, quanto a isso, eles não precisavam se preocupar; pois o que fizeram é seu costume e podem apresentar testemunho, se necessário for, de que isso já acontece há mais de mil anos.2
cris. - Mas será que essa sua prática resistirá a um julgamento perante a lei?
form. e hip. - Disseram que esse costume, sendo de tão longa data, mais de mil anos, sem dúvida seria admitido como acto legal por qualquer juiz imparcial. E além disso, se estamos aqui no caminho, que diferença faz se chegamos por esta ou aquela entrada? Se estamos aqui, estamos e pronto. Você está no caminho e, pelo jeito, entrou pela porta; mas nós que pulamos o muro também estamos no caminho. Em que aspecto é a sua condição melhor que a nossa?
cris. - Eu caminho segundo a regra do meu Mestre; vocês caminham segundo o tosco raciocínio das suas fantasias. Vocês já são tidos como ladrões pelo Senhor do caminho; portanto, duvido que no final do caminho venham a ser tidos como homens verdadeiros. Entraram por conta própria, sem a orientação dele e seguirão por conta própria, sem a misericórdia dele.
Ouvindo isso, pouco argumentaram; mandaram apenas que ele cuidasse da sua vida. Vi então que prosseguiam, cada qual no seu caminho, sem muita conversa uns com os outros. Esses dois homens, porém, disseram a Cristão que não duvidavam de leis e mandamentos, mas que os cumpririam tão conscienciosamente quanto ele. Logo, ralaram:
- Não vemos em que você difere de nós, senão pela capa que traz às costas, que, supomos, lhe foi dada por alguns dos seus vizinhos para esconder a vergonha da sua nudez.
cris. - Por leis e mandamentos vocês não serão salvos, pois não entraram pela porta. Quanto a esta capa que trago às costas, me foi dada pelo Senhor do lugar para onde vou e isso, como vocês dizem, para cobrir a minha nudez. E a tenho como sinal da bondade dele para comigo, pois antes nada tinha senão trapos; além do mais, assim me consolo pelo caminho. Certamente, creio eu, quando chegar ao portão da cidade, o Senhor de lá me reconhecerá como um dos seus, pois trago a sua capa às costas; capa que ele me deu gratuitamente no dia em que me despi dos meus trapos.
- Tenho além disso um sinal na testa – continuou Cristão – do qual talvez vocês ainda não se tenham dado conta, sinal esse que um dos companheiros mais íntimos do meu Senhor gravou aqui no dia em que meu fardo me caiu dos ombros. Digo-lhes, ainda, que me foi dado na ocasião um rolo selado, para eu me consolar pelo caminho com sua leitura. Recebi também ordens de entregá-lo no Portão Celestial, como sinal da certeza de que poderei entrar; tudo isso são coisas de que duvido que vocês sintam falta e desejem, pois não entraram pela porta.
A essas palavras não tiveram resposta; apenas entreolharam-se e riram. Então vi que seguiram caminho eles todos, excepto Cristão, que se retardou, pois já não tinha o que conversar com eles e agora só consigo falava, às vezes suspirando, às vezes aliviado. Também muitas vezes lia o rolo que um dos Seres Resplandecentes lhe dera, com o que se revigorava.
Acho então que eles todos prosseguiram até chegar ao sopé de um morro, onde, na baixada, via-se uma fonte. Também no mesmo lugar havia dois outros caminhos além daquele que, recto, provinha da porta; um guinava à esquerda, o outro à direita, ao sopé do morro; mas o caminho estreito seguia directamente morro acima (e o nome da subida pela encosta do morro se chama Dificuldade). Cristão caminhou até a fonte e bebeu um pouco d'água para refrescar-se; logo depois começou a subir o morro, dizendo:
Embora alto, pretendo, sim, subir este morro;
Não, a dificuldade não me deterá. Eu corro,Pois vejo que passa aqui o caminho da vida.Animo, coração; não tema nem esmoreça na subida.Melhor, mesmo difícil, é tomar o caminho certo;
Pois o errado, embora fácil, leva à perdição do deserto.
Os outros dois homens também chegaram ao sopé do morro. Mas quando viram que a subida era íngreme e longa e que havia dois outros caminhos a tomar e supondo também que esses dois caminhos podiam se encontrar, do outro lado do morro, com aquele que Cristão tomara, resolveram então seguir essas trilhas incertas. Ora, o nome de uma delas era Perigo e a outra se chamava Destruição. Assim, um deles tomou o caminho chamado Perigo, que o levou até uma grande mata; e o outro seguiu directamente o caminho rumo à Destruição, que o levou a uma vasta região repleta de montanhas sombrias, onde tropeçou e caiu, para não mais se erguer.
Procurei então Cristão com o olhar, para vê-lo subindo o morro. Percebi que, se antes corria, passara a caminhar e depois a escalar apoiado nas mãos e nos joelhos, tão íngreme era a subida. Ora, mais ou menos a meio caminho do cume havia um caramanchão aprazível3 feito pelo Senhor do morro para refrigério dos exaustos viajantes.
Chegando ali, Cristão sentou-se para descansar. Tirou o rolo que guardara junto ao peito e leu para consolar-se. Passou também a examinar mais detidamente a capa ou veste que recebera diante da cruz, deleitando-se assim um pouco. Afinal se deixou vencer pelo cansaço e cochilou, logo caindo em sono profundo, o que o deteve ali até quase a noite. Durante o sono o rolo lhe caiu da mão4. Mas estando ainda adormecido, alguém delese aproximou e o despertou, dizendo:
- "Vai ter com a formiga, ó preguiçoso, considera os seus caminhos e sê sábio." (Pv.6:6]
Diante disso Cristão, súbito, retomou a subida, apressando-se pelo caminho até chegar ao cume do morro.
Chegando afinal ao cume, dois homens vieram correndo ao seu encontro; um deles se chamava Timorato, o outro, Desconfiança. Cristão disse a eles:
- Senhores, por que estão correndo na direcção errada?
Timorato disse que estava indo para a Cidade de Sião e que subira até aquele lugar difícil.
- Mas — continuou — quanto mais você avança, mais perigo encontra e por isso estamos voltando.
- Isso mesmo — disse Desconfiança — pois bem à nossa frente, no meio do caminho, vimos dois leões deitados. Não sabemos se estavam dormindo ou despertos; só pensávamos que, se chegássemos mais perto, eles imediatamente nos iriam estraçalhar.
- Vocês me deixam com medo — disse Cristão — mas para onde devo fugir em busca de refúgio? Se voltar à minha terra, sei que ela está reservada para o fogo e o enxofre; e ali certamente morrerei. Se conseguir chegar à Cidade Celestial, tenho certeza de que lá estarei seguro. Tenho de arriscar: voltar é morte certa, mas avançar é o medo da morte e a vida eterna jaz além. Por isso vou prosseguir.
Assim Desconfiança e Timorato desceram o morro correndo e Cristão seguiu caminho. Mas ponderando novamente o que ouvira dos homens, apalpou o peito em busca do rolo, para ler e confortar-se. Apalpando, porém, não o encontrou. Então Cristão se viu em grande angústia, sem saber o que fazer, pois desejava aquilo que costumava aliviá-lo e que seria também seu passe para a Cidade Celestial.
Bastante confuso, não sabia que rumo tomar. Lembrou-se, por fim, de que dormira debaixo do caramanchão na encosta do morro e caindo de joelhos pediu a Deus perdão pelo seu acto insano e depois voltou para procurar o rolo. Mas nesse caminho de volta, quanto pesar não trazia no peito Cristão? Por vezes suspirava, por vezes chorava e repetidamente se repreendia por ter sido insensato a ponto de adormecer no lugar que foi feito só para breve descanso do viajante.
Voltou, assim, tomando o cuidado de esquadrinhar o caminho com os olhos, de um lado e de outro, na esperança de achar o rolo que tantas vezes lhe servira de consolo na jornada. Desceu até novamente enxergar o caramanchão, onde sentara e dormira, mas a visão renovou-lhe o pesar, trazendo-lhe à mente, com força redobrada, a insensatez de ter adormecido.
Descia assim lamentando aquele sono pecaminoso, e dizia: "Ah, desventurado homem que sou (Rm.7:24) por ter dormido durante o dia! Por ter dormido em meio à dificuldade! Por ter cedido assim ao desejo da carne, por ter usado o descanso para aliviar a carne, quando o Senhor do morro o fizera somente para alívio do espírito dos peregrinos! Quantos passos não dei em vão! (O mesmo aconteceu aos israelitas por causa do seu pecado, pois foram enviados de volta pelo caminho do mar Vermelho.)
Tenho agora de trilhar esse caminho com pesar, sendo que poderia trilhá-lo com alegria, não fora esse sono pecaminoso. Quanto já não poderia ter avançado no caminho em todo esse tempo! Tenho de repisar os mesmos passos três vezes, caminho que podia ter trilhado uma só vez. Sim, agora é provável também que a noite me apanhe, pois o dia está quase no fim. Ah, quem dera não ter dormido!"
Afinal alcançou novamente o caramanchão, onde por algum tempo ficou sentado chorando, mas afinal (como ansiava Cristão), olhando pesarosamente debaixo do banco, ali enxergou o rolo, o qual com afã e tremor logo pegou, guardando-o novamente junto ao peito. Quem saberia dizer quanta alegria não sentia esse homem por recuperar o rolo! Pois era certeza de vida e garantia de aceitação no desejado céu. Assim, guardou-o junto ao peito, deu graças a Deus por ter ele guiado seu olhar ao lugar onde estava e com alegria e lágrimas retomou a jornada.
Mas, ah! Com que ligeireza não subiu o caminho até o cume! Porém, antes de lá chegar, o sol já se pusera, e isso o fez lembrar a futilidade do seu sono e assim novamente se pôs a condoer-se. "Ah, sono pecaminoso! Por sua causa, então, a noite me surpreende no meio da jornada! Tenho de prosseguir sem o sol, as trevas devem cobrir os meus passos e ouvirei os lúgubres ruídos das criaturas da noite – tudo por causa desse sono pecaminoso!"
Agora também se lembrava da história que Desconfiança e Timorato lhe haviam contado, o quanto se apavoraram ao ver os leões. Então novamente pensou
Cristão consigo: "Esses animais saem à noite em busca das presas, e se me encontrarem no escuro, como poderei escapar? Como evitar ser estraçalhado por eles?"
Assim seguiu seu caminho, mas enquanto lamentava seu deplorável deslize, ergueu os olhos e eis que diante dele, bem ao lado do caminho, erguia-se um palácio muito imponente e seu nome era Belo.