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sábado, maio 13, 2006

Capítulo 9

CRISTÃO LUTA COM APOLION NO VALE DA HUMILHAÇÃO



Assim paramentado, caminhou com as amigas até o portão e ali perguntou ao porteiro se ele vira algum peregrino passar por ali.
- Vi sim — respondeu ele.
cris. - E o conheceu?
por. - Perguntei seu nome e ele me disse que se chamava Fiel.
cris. - Ah, eu o conheço. É da minha cidade. Vizinho meu. Vem do lugar onde nasci. Quanto você acha que ele já andou?
por. - A essa altura já deve ter descido o morro.
cris. - Que o Senhor esteja com você, então, bom porteiro e muito acrescente a todas as suas bênçãos, pela bondade que você teve para comigo.
E seguiu caminho. Discrição, Piedade, Caridade e Prudência o acompanharam até o sopé do morro. Foram caminhando juntos, repisando as conversas que tiveram, até o início da descida. E Cristão falou:
- Assim como foi difícil subir, também (até onde sei) é perigoso descer.
- É verdade – tornou Prudência – pois para o homem é penoso descer até o Vale da Humilhação, lá em baixo, sem escorregar pelo caminho. Portanto – disseram elas – vamos acompanhá-lo até lá.
Então ele começou a descer, mas com muito cuidado e ainda assim sofreu um ou dois escorregões. E vi no meu sonho que as amáveis companheiras (quando Cristão já descera até o sopé do morro) lhe deram um pedaço de pão, uma garrafa de vinho e um cacho de passas. E assim seguiu caminho.
No Vale da Humilhação, porém, o caminho se tornava difícil para Cristão. Pouco andara ainda quando divisou um demónio maligno vindo pelo campo em sua direcção. Seu nome era Apoliom (Ap.9:11). Cristão teve medo, sem saber se voltava ou continuava. Lembrou, então, que não possuía armadura nas costas, e se deu conta de que virar-lhe as costas talvez desse ao demónio a vantagem de feri-lo facilmente com seus dardos. Sendo assim, Cristão resolveu arriscar-se e continuou, pois, reflectiu ele, mesmo que só pensasse em salvar a própria pele, o melhor a fazer seria enfrentar.
Portanto avançou e Apoliom veio ter com ele. Ora, o monstro tinha aparência apavorante. Era todo coberto de escamas como um peixe (e essas escamas são seu orgulho), tinha asas de dragão, patas de urso, e do ventre lhe saíam fogo e fumaça e a boca era como a de um leão. Alcançando Cristão, encarou-o com olhar desdenhoso, e imediatamente passou a interrogá-lo:
apol. - De onde você vem e para onde vai?
cris. - Venho da Cidade da Destruição, lugar de todo o mal e me dirijo à Cidade de Sião.
apol. - Ah, vejo então que você é um dos meus súbditos, pois toda aquela terra é minha e dela sou príncipe e deus. Como então você foge do seu rei? Não fora a minha esperança de que você possa ainda me servir, agora mesmo o esmagaria no chão de um só golpe.
cris. - Nasci de facto nos seus domínios, mas seu serviço era duro e seu salário, insuficiente para a vida do homem, pois o salário do pecado é a morte (Rm.6:23). Portanto, alcançando a maturidade, fiz como outras pessoas sensatas fazem, procurando uma forma de emendar-me.
apol. - Príncipe nenhum perde assim tão fácil seus súbditos e eu também não pretendo perdê-lo. Mas se você está reclamando do seu serviço e do seu salário, quanto a isso fique tranquilo. Prometo dar-lhe aqui tudo o que de melhor haja na sua terra.
cris. - Mas já me comprometi com outro, com o Rei dos Príncipes, sendo assim como posso, em justiça, voltar contigo ?
apol. - Nisso, como diz o provérbio, você trocou o ruim pelo pior. Mas, dentre aqueles que se confessam servos dele, é comum haver deserções, pois logo voltam para mim. Se você fizer isso, tudo lhe sairá bem.
cris. - Mas já confiei a ele a minha fé e a ele jurei fidelidade, como então poderia voltar atrás sem ser enforcado por traição?
apol. - Você fez o mesmo comigo e no entanto me disponho a esquecer, se você voltar atrás.
cris. - O que lhe prometi o fiz na minha imaturidade; ademais, confio em que o Príncipe cuja bandeira agora defendo me irá absolver – sim – e perdoar também o que fiz na minha submissão a ti. Além disso, ó Apoliom destruidor, para dizer a verdade, gosto de servir a ele, do salário que ele paga, dos seus outros servos, do seu governo, da sua companhia e da sua terra. Gosto mais disso tudo do que das coisas que você me oferece. Portanto, desista de tentar convencer-me. Dele é que sou servo e a ele seguirei.
apol. - Pondere de novo, friamente, o que irá encontrar neste caminho que você está seguindo. Você sabe que a maioria dos servos dele tem triste fim, pois são transgressores contra mim e contra os meus caminhos. Quantos deles não sofreram morte vergonhosa! Além disso, você acha que servir a ele é melhor que servir a mim, mas ele jamais saiu do lugar de onde está para libertar das nossas mãos qualquer um dos que lhe servem. Quanto a mim, porém, como todo o mundo bem o sabe, quantas vezes já não libertei dele e dos seus, por força ou astúcia, aqueles que fielmente me servem; pois assim também o libertarei.
cris. - O fato de ele não libertá-los ainda tem por objectivo testar o seu amor, ver se até o final se manterão fiéis. Quanto ao triste fim que você diz lhes está reservado, isso para eles traz muita glória, pois, no presente, não esperam libertação; aguardam, sim, a glória vindoura e certamente a terão quando o seu Príncipe vier na sua glória e na glória dos anjos.
apol. - Você já foi infiel no seu serviço a ele. Como então espera receber dele salário?
cris. - E como, ó Apoliom, fui infiel a ele?
apol.- Você desfaleceu logo no início, quando quase se afogou no Abismo do Desânimo. Tomou caminhos errados para se livrar do fardo, quando devia ter tolerado até que seu Príncipe lhe aliviasse a carga. Você dormiu em pecado e perdeu coisa muito preciosa. Diante dos leões, quase se deixou convencer a voltar e, ao falar da sua jornada e do que ouviu e viu, no íntimo, você deseja vanglória em tudo o que diz e faz.
cris. - Tudo isso é verdade e muito mais que você não mencionou, mas o Príncipe a quem sirvo e honro é misericordioso, sempre pronto a perdoar. Além disso, essas fraquezas já me possuíam na sua terra, pois foi lá que as contraí e debaixo delas tenho sofrido e lamentado. Mas assim mesmo alcancei o perdão do meu Príncipe
Então Apoliom rebentou em terrível fúria, dizendo:
- Sou inimigo desse Príncipe. Odeio sua pessoa, suas leis e seu povo. Vim com o propósito de deter você.
cris. - Apoliom, tome cuidado com o que pensa fazer, pois estou na estrada do Rei, caminho da santidade. Trate de tomar cuidado, portanto.
Apoliom então, agigantando-se, ocupou o caminho de um lado a outro e disse:
- Não tenho um pingo de medo disso. Prepare-se para morrer, pois juro por meu antro infernal que você não seguirá adiante. Aqui tomarei sua alma.
E, dizendo isso, atirou um dardo flamejante contra o peito de Cristão. Este, porém, defendeu-se com o escudo que trazia no braço, driblando o perigo. Cristão avançou, pois viu que era o momento de provocá-lo. Apoliom também atacou, lançando dardos às saraivadas. Cristão, mesmo tudo fazendo para evitar as setas, feriu-se na cabeça, na mão e no pé e diante disso, recuou.
Apoliom se manteve em feroz ataque, mas Cristão de novo tomou coragem para resistir o mais bravamente possível. O combate, assim acirrado, perdurou por metade do dia, até estar Cristão já quase vencido. Pois há de convir comigo o leitor que Cristão, em virtude dos ferimentos, ficava cada vez mais fraco.
Apoliom, então, antevendo a oportunidade, buscou aproximar-se mais de Cristão e, em luta corpo a corpo, jogou-o no chão. Tão terrível foi o golpe que a espada de Cristão voou longe.
- Vou matá-lo agora — berrou Apoliom, sufocando-o até quase a morte, deixando-o já sem esperança de vida.
Mas quando o demónio se preparava para o golpe fatal, para dar cabo enfim desse bom homem, Cristão, por graça de Deus, estendeu a mão à espada e a agarrou, dizendo:
- "Não te alegres a meu respeito", ó inimigo meu! "Ainda que eu tenha caído, levantar-me-ei" (Mq.7:8). Desferiu então um golpe fatal, fazendo recuar o demónio, como que ferido de morte. Cristão, apercebendo-se disso, atacou-o novamente, bradando:
- "Em todas estas coisas, porém, somos mais que vencedores, por meio daquele que nos amou" (Rm.8:37). Diante disso, Apoliom abriu suas asas de dragão e afastou-se ligeiro e Cristão2 não mais o viu.
Nesse combate, homem nenhum jamais poderia imaginar, a menos que tivesse ele mesmo visto e ouvido como eu, quão horrivelmente Apoliom berrava e rugia durante toda a luta. Falava ele como dragão e, do outro lado, quantos não foram os suspiros e gemidos que brotavam do peito de Cristão! Durante esse tempo todo, não percebi no seu rosto nem um só olhar agradável, senão ao perceber que ferira Apoliom com sua espada de dois gumes. Então afinal sorriu e ergueu os olhos, mas foi a visão mais apavorante que jamais vi.
Assim, finda a batalha, Cristão falou:
- Dou graças aqui àquele que me libertou da boca do leão (2 Tm.4:17), àquele que me auxiliou contra Apoliom. - E disse mais:
O grande Belzebu, chefe e rei desse demónio,Tramou minha ruína; para esse fim medonhoBem equipado enviou-o e com fúria infernalContra mim se atirou em assalto visceral.Mas Miguel, bendito seja, me socorreu,E pela espada fiz debandar o sandeu.Que a Ele eu louve e agradeça eternamenteE sempre bendiga seu santo nome clemente.
E diante dele surgiu uma mão misteriosa que lhe trazia algumas folhas da Árvore da Vida. Cristão as tomou e com elas tratou as feridas que ganhara na batalha, e imediatamente curou-se. Também sentou-se ali para comer do pão e beber do vinho que recebera pouco antes. Assim revigorado, retomou a jornada, espada à mão, dizendo: "Não sei se outro inimigo não está por perto". Mas não enfrentou nenhum outro ataque de Apoliom em todo o vale.