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sábado, maio 13, 2006

Capítulo 5

CRISTÃO ENCONTRA-SE COM INTERPRETE


Cristão continua seu caminho até chegar à casa de Intérprete, onde bateu à porta várias vezes. Afinal alguém apareceu, perguntando quem era ele. Cristão identificou-se:
- Sou um viajante, senhor. Um conhecido do bom homem desta casa enviou-me aqui para o meu próprio bem. Gostaria, pois, de falar com o dono da casa.
Então o homem foi lá dentro chamar o dono da casa, que logo depois apareceu para falar com Cristão, perguntando-lhe o que queria.
cris. - Senhor, venho da Cidade da Destruição e me dirijo ao monte Sião. O homem que fica à porta me disse no início deste caminho que, se eu batesse aqui, o senhor me mostraria coisas excelentes, coisas que me seriam proveitosas na jornada.
int. - Entre. Vou mostrar-lhe algo que lhe será proveitoso.
Mandou então seu servo acender a vela1, e fez sinal para que Cristão o acompanhasse. Levou-o a um aposento e mandou o servo abrir a porta. Feito isso, Cristão viu pendurado na parede o quadro de uma pessoa bastante séria. Era esta a sua aparência: os olhos estavam erguidos aos céus; nas mãos trazia o melhor dos livros; a lei da verdade lhe estava escrita nos lábios; o mundo estava às suas costas; pela postura parecia apelar aos homens e da cabeça lhe pendia uma coroa de ouro.
cris. - O que significa isso?
int. - O homem cuja figura você está vendo é um dentre mil. Pode gerar filhos, dá-los à luz e ainda amamentá-los ele mesmo, depois. E se você o vê de olhos erguidos aos céus, com o melhor dos livros nas mãos e a lei da verdade gravada nos lábios, é para mostrar-lhe que o trabalho dele é conhecer e revelar coisas sombrias aos pecadores, como também apelar aos homens.
- Se você vê o mundo às suas costas — continuou Intérprete — e uma coroa pendendo da cabeça dele, isso é para mostrar-lhe que, desprezando e desdenhando as coisas presentes pelo amor com que serve ao seu Mestre, certamente terá por recompensa a glória, no mundo que há de vir.
- Ora — disse ele ainda — mostrei-lhe primeiro este quadro porque o homem cuja figura você está vendo é o único homem a quem o Senhor do lugar para onde você está indo autorizou para guiá-lo em todos os lugares difíceis que você talvez encontre pelo caminho. Portanto preste bastante atenção ao que lhe mostrei. Guarde bem o que você viu, para que não encontre, durante a sua jornada, alguém que finja estar encaminhando você ao rumo certo, quando na verdade o está levando à ruína e à morte.
Então Intérprete o tornou pela mão e o levou a uma sala bem grande, cheia de poeira, pois jamais era varrida. Depois de examiná-la, Intérprete mandou um homem varrê-la. Ora, começando ele a varrer, o pó ergueu-se tão abundante que Cristão quase sufocou. Disse então Intérprete a uma jovem que estava ali ao lado:
- Traga água e borrife um pouco na sala. Feito isso, a sala pôde ser varrida e limpa com prazer.
cris. - O que significa isso?
int. - Esta sala é o coração do homem que jamais foi santificado pela doce graça do Evangelho. A poeira é seu pecado original e as corrupções mais íntimas que macularam todo o homem. Aquele que começou a varrer primeiro é a lei, mas a que trouxe água e a borrifou, é o Evangelho. Ora, você mesmo viu que assim que o homem começou a varrer, a poeira levantou, tornando impossível limpar a sala. Você quase sufocou. Isso foi para mostrar-lhe que a lei, em vez de limpar (pela sua acção) o coração do pecado, na verdade o faz reviver, o fortalece e o amplia na alma, ainda que o revele e proíba, pois não dá força para subjugar.
- Depois — continuou ele — você viu a jovem borrifar a sala com água, podendo então limpá-la com prazer. Isso é para mostrar-lhe que quando o Evangelho entra no coração com sua influência doce e inestimável, o pecado é conquistado e subjugado, da mesma forma como você viu a jovem fazer pousar a poeira borrifando o chão com água. A alma se faz limpa pela fé, preparando-se consequentemente para que o Rei da Glória a habite.
Vi ainda no meu sonho que Intérprete tomou Cristão mais uma vez pela mão e o levou a um quarto apertado, onde se viam dois menininhos sentados, cada qual em sua cadeira. O nome do mais velho era Paixão, e o outro chamava-se Paciência. Paixão parecia muito insatisfeito, mas Paciência permanecia bem tranquilo. Então perguntou Cristão:
- Qual o motivo do descontentamento de Paixão?
- Seu tutor quer que ele espere, que as melhores coisas lhe virão no início do ano que vem. Mas ele as quer agora. Paciência, no entanto, se dispôs a aguardar.
Vi então que alguém se aproximou de Paixão e, trazendo-lhe um saco, derramou um tesouro aos seus pés. Ele o tomou, alegrou-se e ainda riu-se de Paciência, zombeteiro. Continuei a observar e notei que Paixão logo dissipou tudo, nada lhe restando senão farrapos.
- Explique-me melhor esse assunto – pediu Cristão a Intérprete.
int. - Esses dois meninos são simbólicos: Paixão representa os homens deste mundo e Paciência, os homens do mundo que há de vir. Pois, como você está vendo aqui, Paixão quer tudo agora, este ano, ou seja, neste mundo. São assim os homens deste mundo; eles precisam ter todas as boas coisas agora; não podem aguardar até o ano que vem, ou seja, até o mundo vindouro, para receber o seu quinhão de benefícios. Intérprete continuou dizendo:
— O provérbio "Mais vale um pássaro na mão que dois voando" tem para eles mais autoridade do que todos os testemunhos divinos do bem do mundo que há de vir. Mas como você mesmo viu, Paixão esbanjou tudo rapidamente e nada lhe restou agora senão farrapos. Assim acontecerá aos homens dessa espécie quando do final deste mundo.
cris. - Agora vejo que Paciência exibe a sabedoria mais perfeita e isso por duas razões: Primeiro porque aguarda as melhores coisas. E, segundo, porque também terá a glória, enquanto ao outro nada resta senão farrapos.
int. - Você pode acrescer ainda esta outra: a glória do mundo vindouro jamais se gastará, mas as daqui subitamente passam. Sendo assim, Paixão não teve tanto motivo para rir de Paciência só por ter recebido as boas coisas primeiro. Quanto a Paciência, terá de rir-se de Paixão por receber as melhores coisas por último, pois o primeiro precisa dar lugar ao último, já que o último também terá a sua hora. O último, porém, não cede o lugar a ninguém, pois não há quem venha depois dele.
- Aquele portanto que recebe primeiro o seu quinhão – disse-lhe Intérprete – deve sem dúvida ter a oportunidade de gastá-lo; porém aquele que receber a sua porção por último a terá para sempre. Logo, diz-se do rico: "Recebeste os teus bens em tua vida e Lázaro igualmente os males; agora, porém, aqui, ele está consolado; tu, em tormentos" (Lc.16:25).
cris. - Então percebo que não é melhor cobiçar as coisas que hoje existem, mas esperar pelas que hão de vir.
int. — Você diz a verdade, "porque as coisas que se vêem são temporais e as que se não vêem são eternas" (2 Cor.4:18). Mas mesmo assim, como as coisas presentes e nosso desejo carnal são vizinhos tão próximos um do outro e como as coisas que virão e o sentido carnal são tão estranhos um para o outro, é natural que aqueles se tornem tão rapidamente amigos e que a distância entre estes se mantenha.
Então vi no meu sonho que Intérprete tomava Cristão pela mão e o levava a um lugar onde se via uma fogueira ardendo diante de uma parede. Ali havia alguém que não saía de perto, jogando sempre muita água na fogueira com a intenção de apagá-la. Mas as chamas aumentavam e ficavam cada vez mais quentes.
- O que significa isso? — Perguntou Cristão.
- Esta fogueira – respondeu Intérprete – é a obra da graça que se opera no coração. Aquele que joga a água, tentando apagá-la e extingui-la, é o Diabo; mas você pode ver que o fogo, assim mesmo, fica sempre maior e mais quente. Você também verá a razão disso.
Então ele o levou para trás da parede, onde se via um homem com um vaso de óleo nas mãos. Ele, em segredo, derramava continuamente óleo no fogo. Disse Cristão:
- O que isso significa?
- Este é Cristo, que continuamente, com o óleo da sua graça, mantém viva a obra já iniciada no coração e por meio dessa obra, a despeito de tudo o que pode fazer o Diabo, as almas dos crentes se provam piedosas. Mas você observou também que o homem fica atrás da parede para alimentar o fogo. Isso é para ensinar-lhe que é difícil para aquele que é tentado ver como essa obra graciosa se conserva na alma.
Vi também que Intérprete tomava-o novamente pela mão, levando-o até um lugar agradável, onde se erguia um imponente castelo, belo de admirar. Cristão exultou diante da visão. Viu ele também que, no terraço do castelo, algumas pessoas caminhavam, vestidas todas de ouro.
- Podemos entrar? — Perguntou Cristão.
Intérprete então tomou-lhe a mão e o levou até a porta do castelo e eis que, à porta, havia um grande ajuntamento de homens, todos desejosos de entrar, mas nenhum deles ousava fazê-lo. Ali também estava sentado um homem, a pouca distância da porta, ao lado de uma mesinha e sobre esta via-se um tinteiro e um livro, no qual ele anotava o nome daquele que haveria de entrar.
Cristão viu também que no vão da porta havia muitos homens que, trajando armaduras, barravam a passagem, determinados a fazer todo dano e mal que pudessem àquele que tentasse entrar. Cristão ficou ali absorto. Por fim, quando todos começaram a recuar com medo dos homens armados, Cristão viu um homem de semblante bem resoluto aproximar-se do que estava sentado escrevendo e disse: - Anote o meu nome, senhor.
Viu então que o homem desembainhava a espada e colocava um capacete na cabeça, avançando rumo à porta, contra os homens armados, que sobre ele caíram com força mortal. O homem, porém, não se deixou esmorecer e, mesmo caído, golpeava e talhava ferozmente. Assim, depois de ser ferido e ferir muitos dos homens que tentavam evitar a sua entrada, conseguiu abrir caminho em meio a todos eles, entrando no palácio.
Ouviu-se, então, uma bela voz vinda dos que estavam lá dentro, dos três mesmos que caminhavam no terraço do palácio, e dizia:
Entre, entre; Glória aqui você terá para sempre.
Então ele entrou e se vestiu com os mesmos trajes dos outros. Cristão sorriu e disse:
- Acho, em verdade, que já sei o significado disso. Agora, deixe-me seguir adiante.
- Não, fique aqui – exclamou Intérprete – até que eu lhe mostre um pouco mais. Depois você poderá seguir o seu caminho.
Então Intérprete novamente o tomou pela mão e o levou a um recinto muito escuro, onde se via um homem sentado atrás de grades de ferro.2
Ora, o homem parecia muito triste. Estava ali sentado com os olhos pregados no chão, as mãos unidas, e suspirava como se trouxesse o coração amargurado. Disse Cristão:
- O que significa isso? – Intérprete pediu-lhe que conversasse com o homem.
- O que você é? – Perguntou Cristão.
- Sou o que antes não era – respondeu o homem.
cris. — O que você era?
homem — Antes era um professor3 formoso e bem-sucedido, tanto aos meus próprios olhos quanto aos olhos dos outros. Pensava que estava destinado a subir até a Cidade Celestial e então até me alegrava diante da ideia de que lá chegaria.
cris. — Sim, mas o que você é agora?
homem — Hoje sou um homem desesperado e no desespero estou preso, como nessas grades de ferro. Não posso sair. Ah, já não posso mais.
cris. — Mas como é que você chegou a esta condição?
homem — Deixei de vigiar, de me manter sóbrio. Larguei as rédeas no pescoço das minhas paixões. Pequei contra a luz da palavra e a bondade de Deus. Entristeci o Espírito e ele se foi. Tentei o Diabo e ele me veio. Provoquei a ira de Deus e ele me abandonou. Tanto endureci o meu coração, que já não posso me arrepender.
- Mas então não há esperança para um homem como este – disse Cristão a Intérprete.
- Pergunte a ele.
cris. - Então não há esperança? Você tem de continuar preso atrás dessas grades de ferro, em desespero?
homem — Esperança nenhuma.
cris. - Por quê? Se o Filho do Bem-Aventurado é sobremodo misericordioso?
homem - Eu o crucifiquei de novo para mim mesmo; desprezei a sua pessoa; desdenhei da sua justiça; tive o seu sangue como coisa ímpia, ultrajei o Espírito da graça (Hb.10:29). Portanto distanciei-me de todas as promessas e agora nada me resta senão ameaças, terríveis ameaças, temíveis ameaças de segura condenação e feroz indignação, que me irão devorar como um adversário.
cris. - Por conta do que você se deixou cair em tal estado? homem - Pelas paixões, prazeres e proveitos deste mundo, e ao gozá-los prometi a mim mesmo muito deleite. Mas agora cada uma dessas coisas me rói e me atormenta como verme ardente.
cris. - Mas agora você não pode se arrepender e voltar atrás?
homem - Deus me negou o arrependimento. Sua Palavra não me encoraja a crer. Sim, ele mesmo me trancou atrás destas grades de ferro e nem todos os homens do mundo podem me libertar. Ah, eternidade! Eternidade! Como lutar contra a miséria que me aguarda na eternidade? Lembre-se da miséria deste homem. Chie isto lhesirva como incessante alerta — disse Intérprete a Cristão.
cris. - Bem, isso é terrível. Deus me ajude a vigiar, a ter comedimento e a orar para evitar a causa da miséria deste homem. Senhor, já não é hora de eu retomar o meu caminho?
int. - Espere. Quero mostrar-lhe ainda outra coisa. Depois poderá seguir o seu caminho.
Assim novamente ele tomou Cristão pela mão e o levou a uma câmara, onde alguém se erguia da cama e, vestindo as roupas, tremia e estremecia. Admirou-se Cristão: - Por que este homem treme tanto?
Intérprete mandou que o homem contasse a Cristão por que agia assim. Ele tomou a palavra e disse:
- Esta noite, estando eu dormindo, sonhei e eis que os céus ficaram profundamente negros. Também trovejava e relampejava do modo mais terrível, tanto que entrei em agonia. No meu sonho, ergui os olhos e vi o vento soprando as nuvens de uma maneira esquisita. Ouvi depois um grande clangor de trombeta e vi também um homem sentado sobre uma nuvem, servido pêlos milhares dos céus, todos envoltos em chamas ardentes, assim como também os céus. — O homem continuou:
- Ouvi então uma voz que dizia: "Levantai, mortos e vinde ao juízo". E diante disso as rochas se fenderam, os sepulcros se abriram e os mortos que lá estavam saíram. Alguns deles se mostravam incrivelmente contentes e olhavam para o alto. Alguns procuravam se esconder sob as montanhas. Então olhei para o homem que estava sentado sobre a nuvem e o vi abrir o livro, convocando o mundo para junto de si. Porém, por força de uma de uma labareda ardente que emanava dele, havia uma distância conveniente entre ele e os outros, como entre o juiz e os prisioneiros num tribunal.
- Também ouvi — disse ele — forte clamor proclamar aos que serviam o homem sentado na nuvem: "Ajuntai o joio, a palha e o restolho e lançai tudo no lago de fogo". E imediatamente se abriu o abismo sem fundo, bem abaixo de onde eu me encontrava e lá de dentro jorravam brasas ardentes e fumaça, acompanhadas de sons horripilantes. Às mesmas pessoas se disse:
"Recolhei o trigo no meu celeiro" (Lc.3:17; Mt.3:12) E com isso vi muitos serem arrebatados e alçados às nuvens. Mas eu fiquei. Também procurei eu mesmo me esconder, mas não conseguia, pois o homem sobre a nuvem não tirava os olhos de mim. Meus pecados também me vieram à mente e minha consciência me acusava a cada passo. Foi aí que acordei.
cris. — Mas o que foi que o deixou com tanto medo dessa visão?
homem. — Ora, pensei que o dia do juízo chegara e que eu não estava pronto para ele. Mas isso muito me apavorou, pois os anjos arrebataram vários e me deixaram para trás; ademais o abismo do inferno abriu-se bem onde eu estava. Minha consciência também me afligia no íntimo; e enquanto eu pensava essas coisas, o juiz não tirava os olhos de mim, revelando indignação no semblante. – Depois disse Intérprete a Cristão:
- Você já reflectiu sobre todas essas coisas?
cris. - Já e elas me incutem esperança e medo.
int. - Bom, lembre-se bem de tudo isso, para que lhe seja espinho na carne, que o faça avançar pelo caminho que você deve seguir.
Então Cristão foi se aprontar para retomar a jornada. Mas disse-lhe ainda Intérprete:
- O Consolador esteja sempre com você, bom Cristão, para guiá-lo pelo caminho que conduz à Cidade. Assim partiu Cristão, dizendo:
Coisas raras e proveitosas vi;
Coisas agradáveis, temíveis; e o que vi aquiMe fortaleça naquilo que me propus fazer.Que eu nelas pondere para compreenderPor que me foram mostradas e que seja eu,O bom Intérprete, grato ao conselho teu.