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sábado, maio 13, 2006

Capítulo 3

AS ARMADILHAS DO CAMINHO


Enquanto Cristão caminhava solitário, divisou alguém que vinha cruzando o campo em sua direcção; e calhou que se encontraram bem quando cruzavam o caminho um do outro. O nome do cavalheiro era sr. Sábio-segundo-o-mundo. Morava na cidade da Diplomacia Profana, cidade bem grande, e também bem próxima de onde vinha Cristão.
Esse homem já sabia algo sobre Cristão, pois a partida deste da Cidade da Destruição fora muito alardeada no estrangeiro e não só na cidade onde ele morava, virando também mexerico em alguns outros lugares. O sr. Sábio-segundo-o-mundo, portanto, tendo já alguma informação sobre Cristão, observando a sua esforçada caminhada e percebendo seus suspiros e gemidos, quis entre outras coisas conversar um pouco com Cristão.
sáb. - Como então, bom homem, você parte assim apressado e tão carregado?
cris. - De fato, sempre achei que cada pobre criatura tem o seu fardo a carregar. E se o senhor me pergunta se parto apressado, digo-lhe que busco alcançar a distante porta estreita adiante de mim, pois lá, segundo me disseram, conhecerei um modo de me livrar desse pesado fardo.
sáb - Você tem mulher e filhos?
cris"'-. - Tenho, mas estou tão sobrecarregado com esse fardo que já não encontro neles prazer como antes; para mim e como se não os tivesse (1 Cor. 7:29).
sáb. - Você acaso me ouviria se eu o aconselhasse?
cris. - Se for bom concelho, certamente, pois ando mesmo precisando disso.
sáb. - Eu o aconselharia, então, a livrar-se o mais rápido possível do seu fardo, pois só então alcançará paz na sua mente; só então poderá desfrutar dos benefícios da bênção que Deus lhe concedeu.
cris. - É isso o que busco: exactamente livrar-me desse pesado fardo, mas não posso tirá-lo de sobre os ombros, tampouco há homem em nossa terra que possa fazê-lo. Portanto sigo este caminho, como já lhe disse, para me livrar deste fardo.
sáb. - Quem mandou que você viesse por este caminho para livrar-se do seu fardo?
cris. - Um homem que me pareceu pessoa muito boa e honrada. Seu nome, se bem me lembro, é Evangelista.
Sáb. - Eu o amaldiçoo por esse conselho. Não há no mundo caminho mais perigoso e difícil que este que ele lhe indicou e isso você mesmo vai descobrir, se continuar a seguir o conselho dele. Você já se deparou com algo (como percebo), pois estou vendo a imundície do Pântano do Desânimo. Esse pântano, porém, é o início dos pesares que afligem aqueles que tomam este caminho. Ouça-me – acrescentou o sábio – sou mais velho que você! É provável que, no caminho, você encontre exaustão, dor, fome, perigos, nudez, espada, leões, dragões, trevas e, em suma, a morte, entre outras coisas. Todas elas são seguramente verdadeiras, já tendo sido confirmadas por muitas testemunhas. E por que deveria um homem condenar-se tão gratuitamente dando ouvidos a um estranho?
cris. - Este fardo às minhas costas é mais terrível para mim do que todas essas coisas que o senhor mencionou. Não, acho que é melhor não me preocupar com o que eu venha a encontrar no caminho, pois assim poderei também livrar-me do meu fardo.
Sáb. - Mas como afinal veio-lhe este fardo?
cris. - Lendo este livro que tenho nas mãos.
Sáb. - Eu já imaginava. 1 O mesmo ocorreu a outros fracos, que, metendo-se com coisas elevadas demais para si caem subitamente nessas mesmas dificuldades, que não só castram os homens – como vejo que as suas lhe fizeram – mas os levam a aventuras desesperadas para alcançar nem eles sabem o quê.
cris. - Eu sei o que quero alcançar: alívio deste meu fardo pesado.
Sáb. - Mas por que você vem procurar alívio neste caminho, vendo que há tantos perigos? Se você tivesse a paciência de ouvir-me, poderia dizer-lhe como alcançar o que deseja, sem enfrentar os perigos que este caminho lhe oferece. Veja, o remédio está à mão. E tem mais, em vez desses perigos você encontrará muita segurança, amizade e alegria.
cris. - Rogo, senhor, que me revele esse segredo.
sáb. - Ora, numa vila distante (chamada Moralidade) mora um cavalheiro cujo nome é Legalidade, homem muito sensato (e de reputação muito ilibada) que tem a capacidade de ajudar a aliviar os homens dos fardos, como os seus, que carregam nos ombros. Pelo que sei ele já fez isso muito bem.
- Além disso – continuou o sábio – ele sabe como curar aqueles que se acham com a mente um tanto perturbada por conta dos fardos que carregam. E a ele, como disse, que você deve procurar. Ele vai ajudá-lo prontamente. Sua casa não fica a mais de um quilómetro e meio daqui e se ele mesmo não estiver em casa, seu filho – um jovem muito bonito, chamado Urbanidade – é tão perito nisso (a propósito) quanto o próprio idoso pai. Garanto-lhe que ali você poderá encontrar alívio do seu fardo.
- E digo mais – acrescentou ainda o sábio – se você não estiver disposto a voltar para sua antiga casa, como de facto eu não desejaria que você fizesse, poderá mandar buscar a sua esposa e os seus filhos e instalar-se nessa vila. Nela, há hoje casas vazias, uma das quais você pode conseguir por preço razoável. Ali também encontrará mantimentos bons e baratos, mas o que irá tornar a sua vida mais feliz é que, com certeza, ali encontrará vizinhos sinceros, confiáveis e educados.
Ora, Cristão se viu um tanto indeciso, mas logo concluiu que, se era verdade o que lhe dissera esse cavalheiro, a melhor atitude a tomar seria aceitar o seu conselho. Então respondeu:
cris. - Senhor, que caminho devo tomar até a casa desse homem honesto?
sáb. - Você está vendo ao longe aquela alta colina? 2
cris. - Estou vendo, sim.
sáb. - E para lá que deve seguir. A casa dele é a primeira que você avistar.
Assim, Cristão desviou-se do seu caminho para ir até a casa do Sr. Legalidade em busca de ajuda. Mas eis que, quando já se aproximava da colina, esta pareceu-lhe tão alta e também a encosta mais próxima do caminho pendia a tal altura, que Cristão teve medo de se aventurar mais, temendo que a colina lhe caísse sobre a cabeça. Portanto ali ficou imóvel, sem saber o que fazer. Além disso, o seu fardo agora lhe parecia mais pesado do que quando ele seguia o seu caminho.
Também da colina vinham lampejos de fogo, e Cristão temeu vir a ser queimado (Êx 19:16, 18). Suava e até tremia de medo (Hb 12:21). Então começou a se arre- pender de ter aceitado o conselho do sr. Sábio-segundo-o- mundo.
Viu, então, Evangelista que vinha em sua direcção e corou de vergonha. Evangelista se aproximou mais e mais e, chegando até Cristão, olhou-o com semblante severo e temível.
evan. - O que você está fazendo aqui? - Cristão não sabia o que responder, permanecendo calado diante dele. - Você não é o homem que achei chorando dentro dos muros da Cidade da Destruição?
cris. - Sim, senhor, eu mesmo.
evan. — Não lhe pedi que seguisse o caminho que leva à portinha estreita?
cris. - Sim, senhor.
evan. - Então como é que você se desviou tão rapidamente para fora do caminho?
cris. - Encontrei um cavalheiro logo depois de passar pelo Pântano do Desânimo. Esse senhor distinto convenceu-me de que na vila ali adiante eu acharia um homem que poderia me aliviar do fardo.
evan. - Quem era ele?
cris. — Parecia um cavalheiro. Conversou bastante tempo comigo e, afinal conseguiu convencer-me. Então vim para cá. Mas quando me deparei com esta colina, vendo como se debruça por sobre o caminho, de repente parei, com medo de que caísse sobre a minha cabeça.
evan. — E o que esse cavalheiro lhe disse?
cris. - Bem, ele me perguntou aonde eu ia e eu lhe contei.
evan. — E o que mais ele lhe falou?
cris. - Perguntou se eu tinha família e eu respondi. Disse-lhe que estava tão sobrecarregado com o fardo que trago às costas que já não encontro prazer na minha família como antes.
evan. - O que ele lhe disse então?
cris. - Ele mandou que me livrasse rapidamente do meu fardo e eu lhe disse que era o alívio que eu buscava. Eu lhe disse, também, que seguia rumo à porta distante para receber mais orientações sobre como alcançar o local da libertação. Então ele disse que me mostraria um caminho melhor e mais curto, não tão repleto de dificuldades como aquele em que o senhor me colocou. Ele disse que o caminho que ele estava me ensinando leva directamente à casa de um cavalheiro que sabe como aliviar esses fardos. Então acreditei nele e desviei-me daquele caminho para tomar este outro, esperando logo me ver livre do fardo. Mas, chegando aqui, vi as coisas como são e parei com medo (como disse) do perigo. Agora não sei o que fazer.
evan. - Então continue parado para que eu possa mostrar-lhe as palavras de Deus. - E Cristão ficou ali tremendo. - "Tende cuidado, não recuseis ao que fala. Pois, se não escaparam aqueles que recusaram ouvir quem divinamente os advertia sobre a terra, muito menos nós, os que nos desviamos daquele que dos céus nos adverte" (Hb 12:25). - Disse também: — Ora, "o meu justo viverá pela fé, e: Se retroceder, nele não se compraz a minha alma" (Hb.10:38). - Depois ainda aplicou-lhe as palavras: - Você é esse homem que se encaminha para essa miserável condição. Você passou a rejeitar o conselho do Altíssimo e desviou seus pés do caminho da paz, chegando mesmo a arriscar-se à perdição. Então Cristão prostrou-se aos seus pés, corno morto, lamentando-se:
- Ai de mim, que estou arruinado! (Is.6:5) - Diante disso, Evangelista tornou-o pela mão direita, dizendo:
- "Todo pecado e blasfémia serão perdoados ao homem" (Mt.12:31; Mc.3:28), portanto "não sejas incrédulo, mas crente" (João 20:27).
Então Cristão ganhou um pouco de alento e se pôs de pé ainda tremendo, como antes, diante de Evangelista, que lhe disse:
- Preste mais atenção às coisas que lhe contarei agora. Vou dizer-Lhe quem foi que o iludiu e a quem ele o enviou. O homem que você encontrou é um Sábio-segundo-o-mundo. Ele é assim chamado e com justiça, porque em parte só valoriza a doutrina deste mundo e portanto sempre vai à igreja na cidade da Moralidade e em parte porque ama acima de tudo essa doutrina, pois o salva da cruz. Como a índole desse Sr. Sábio é carnal, ele procura evitar os meus caminhos, embora correios,
- Ora — continuou Evangelista — há três coisas no conselho desse homem que você deve abominar completamente. Primeiro, o facto de ele ter desviado você do caminho. Segundo, o facto de ele ter-se esforçado por tornar a cruz odiosa para você. E, finalmente, o facto de ele ter mandado você trilhar o caminho que conduz à morte.
- Portanto — disse ainda Evangelista — você precisa, em primeiro lugar, abominar a tentativa que ele fez de desviá-lo do caminho, assim como o seu próprio consentimento, pois isso equivale a rejeitar o conselho de Deus, em favor do conselho de um Sábio-segundo-o-mundo. Diz o Senhor: "Esforçai-vos por entrar pela porta estreita" (Lc.13:24), a porta para a qual enviei você, pois "estreita é a porta... que conduz para a vida e são poucos os que acertam com ela" (Mt.7:13,14). Dessa portinha estreita e desse caminho que a ela conduz, é que esse homem ímpio desviou você, para levá-lo quase à destruição. Odeie, portanto, essa sua tentativa de desviar-se do caminho e abomine a você mesmo por ter dado ouvidos a ele.
- Em segundo lugar — continuou — você precisa aborrecer o esforço desse Sr. Sábio no sentido de fazê-lo odiar a cruz, pois você deve preferi-la aos tesouros do Egipto (Hb.11:26). Ademais o Rei da Glória já lhe disse que "quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á" (Mc.8:35) e que aquele que o segue "e não aborrece a seu pai, mãe, mulher, filhos, irmãos, irmãs e ainda a sua própria vida, não pode ser meu discípulo" (Lc.14:26). O que estou dizendo é que, se um homem se esforça por convencê-lo de que isso será a sua morte, você deve odiar tal doutrina, pois sem a verdade você não pode ter vida eterna.
- Em terceiro lugar — disse Evangelista — você precisa odiar o facto de esse homem tê-lo colocado no caminho que conduz à morte. Mas, para isso, você tem de considerar a pessoa para quem ele o enviou e também o fato de que ela é incapaz de libertá-lo do seu fardo. — E Evangelista ainda disse a Cristão:
- Aquele a quem você foi enviado para encontrar alívio e que se chama Legalidade, é filho da mulher escrava (Gl.4:21-31), que está acorrentada junto com os seus filhos e envolta em mistério. Ela é hoje este monte Sinai, que você temeu que caísse sobre a sua cabeça. Ora, se ela e seus filhos estão acorrentados, como você pode esperar deles a liberdade?
— Esse Legalidade, portanto — continuou — não é capaz de libertá-lo do seu fardo. Homem nenhum jamais foi libertado do seu fardo por intermédio dele e provavelmente jamais o será. Ninguém pode ser justificado pelas obras da lei, pois pêlos actos da lei nenhum homem vivente pode se livrar do seu fardo.
- Portanto — concluiu Evangelista — o Sr. Sábio-se-gundo-o-mundo é adversário e o Sr. Legalidade, impostor; e quanto ao seu filho Urbanidade, não obstante a sua falsa aparência sorridente, não passa de um hipócrita que não pode ajudá-lo. Creia-me: nada há em todas essas bobagens que você ouviu desse estúpido, a não ser o intento de afastá-lo da sua salvação, desviando-o do caminho no qual coloquei você.
Depois disso Evangelista invocou do céu, em voz alta, a confirmação daquilo que dissera e então saíram palavras e fogo da montanha sob a qual se achava o pobre Cristão, que ficou de cabelos arrepiados diante do espectáculo. As palavras foram estas: "Todos quantos, pois, são das obras da lei, estão debaixo de maldição: porque está escrito: “Maldito todo aquele que não permanece em todas as coisas escritas no livro da lei, para praticá-las" (Gl.3:10). Assim Cristão nada mais esperava a não ser a morte e lamentava-se deploravelmente, amaldiçoando até o momento em que encontrou o Sr. Sábio-segundo-o-mundo e ainda chamando-se mil vezes obtuso por ter dado ouvidos ao seu conselho. Sentia-se também muito envergonhado, ponderando como os argumentos desse distinto senhor, oriundos que eram somente da carne, puderam prevalecer nele e levá-lo a abandonar o caminho recto. Isso feito, dirigiu-se novamente a Evangelista, dizendo:
cris. - O que o senhor acha? Ainda há esperança? Será que posso voltar e seguir até a porta estreita? Não serei abandonado por isso, ou enviado de volta coberto de humilhação? Lamento muito ter dado ouvidos ao conselho desse homem, mas que meu pecado me seja perdoado.
evan. — O seu pecado é muito sério, pois você praticou dois males: abandonou o bom caminho e trilhou caminhos proibidos. Contudo, o porteiro vai recebê-lo, pois demonstra boa vontade para com os homens. Mas cuidado para que não se desviar novamente, para não perecer pelo caminho quando em breve a sua ira estiver acesa (SI 2:12).
Então Cristão disse que voltaria, e Evangelista, depois de beijá-lo, sorriu-lhe, desejando-lhe sucesso. Cristão partiu apressado; não falou com homem algum pelo caminho e, se alguém o interpelava, tampouco dava-lhe resposta.
Seguia como alguém que trilhasse sempre solo proibido e não se julgou seguro enquanto não retomou o caminho que deixara para seguir o conselho do Sr. Sábio-segundo-o-mundo.