VOCÊ NÃO ESTÁ NA PÁGINA PRINCIPAL. CLIQUE AQUI PARA RETORNAR





quarta-feira, maio 10, 2006

Capítulo 9

Capítulo 9 - O autor reassume ensinamentos desenvolvidos com brevidade em outro trabalho.

17. Deveis lembrar-vos do que eu disse na pequena obra escrita contra Porfírio sob o título: O tempo da religião cristã. Fiz aquelas afirmações com a finalidade de omitir uma dissertação mais diligente e mais trabalhosa, sem deixar, no entanto, de indicar o verdadeiro significado da graça, porque não queria explanar naquela obra o que podia ser explicado em outras circunstâncias ou por outros autores. Entre outras coisas, respondendo à pergunta que me foi formulada: “Por que Cristo veio ao mundo depois de tantos séculos?”, afirmei o seguinte:
Como não se põem contra Cristo pelo fato de nem todos seguirem sua doutrina — pois eles mesmos percebem que não se pode argumentar legitimamente deste modo, seja contra a sabedoria dos filósofos, seja contra a divindade de seus deuses—, o que responderão se, salvaguardando a profundidade da sabedoria e da ciência de Deus, na qual talvez se oculte um desígnio divino mais secreto e sem prejuízo também de outros motivos que podem ser investigados pelos entendidos, nós lhes disséssemos apenas isto, devido à brevidade na discussão deste assunto: que Cristo quis aparecer aos homens e anunciar-lhes a sua doutrina somente quando sabia existirem os que nele haveriam de crer? Pois, nos tempos e lugares, nos quais foi pregado seu evangelho, sabia por sua presciência que existiriam, com relação à sua pregação, tantos homens, como existiriam nos dias de sua presença corporal, embora nem todos, mas muitos deles não quiseram acreditar nele, apesar de ter ressuscitado muitos mortos. Agora também são muitos os que, apesar de se cumprirem com tanta evidência as predições dos profetas a seu respeito, não querem ainda crer e preferem resistir com astúcia humana em vez de se entregarem à autoridade divina tão clara, tão evidente, tão sublime e tão sublimemente manifestada, enquanto a inteligência humana se revela tão fraca e limitada para se conformar à verdade divina.
Por que estranhar, se Cristo, que conhecia o estado do mundo nos tempos primitivos tão cheio de infiéis, não se lhes quisesse manifestar nem ser anunciado, já que sabia por sua presciência que não haveriam de acreditar pela pregação nem pelos milagres? E nem é incrível que todos fossem infiéis, quando vemos que, desde a sua vinda até os tempos de hoje, existiram e existem muitos também incrédulos.
Contudo, desde o princípio do gênero humano, umas vezes de modo mais oculto e outras vezes mais às claras, conforme parecia a Deus acomodar-se aos tempos, nunca ele permitiu que faltassem profetas, nem faltassem os que nele acreditaram. E isso aconteceu antes de ele se encarnar no próprio povo de Israel, que por um singular mistério foi uma nação profética, e também nos outros povos. E como alguns são lembrados nos santos livros hebreus, mesmo desde o tempo de Abraão, mas não nascidos de sua linhagem nem do povo de Israel, que nem de algum grupo agregado ao povo de Israel, os quais, no entanto, participaram deste mistério da fé em Cristo, por que não acreditar que tenham existido outros crentes entre outros povos, aqui e acolá, embora não sejam mencionados nos referidos livros?
Assim, o poder salvífico desta religião, a única verdadeira, pela qual se promete em verdade a verdadeira salvação, jamais faltou a alguém que dele fosse digno, e se a alguém faltou, é porque não foi digno. E ela é anunciada a alguns para recompensa, e a outros, para manifestação da justiça desde o começo das gerações humanas até o seu fim. Por isso, aqueles aos quais não foi absolutamente anunciada, ele sabia pela sua presciência que não haveriam de crer, e a quem foi anunciada, sabendo que não acreditariam, estes são revelados para exemplo dos outros. Porém, aqueles a quem é anunciada, pois hão de crer, são os que Deus prepara para o reino dos Céus e a companhia dos santos anjos” (Carta 102, nn. 14-15).
18.
Julgais que, sem prejuízo dos desígnios ocultos de Deus e de outras causas, quis dizer tudo isto sobre a presciência de Cristo, porque me parecia ser suficiente para convencer os incrédulos que me lançaram esta pergunta? O que há de mais verdade que o fato de Cristo ter sabido antecipadamente quais, quando e em que lugares existiriam os que nele haveriam de crer?
Mas não considerei necessário investigar e discorrer naquele momento, se, depois de lhes ter sido anunciado o Cristo, teriam possuído a fé por si mesmos ou a teriam recebido de Deus como um dom, ou seja, se esta fé teria sido objeto apenas da presciência de Deus ou se Deus os teria predestinado. Portanto, o que afirmei: “Que Cristo quis aparecer aos homens e anunciar-lhes sua doutrina somente quando sabia e onde sabia existirem os que nele haveriam de crer”, pode-se dizer também deste modo: “Que Cristo quis aparecer aos homens e anunciar-lhes sua doutrina, quando sabia e onde sabia existirem os que tinham sido escolhidos nele antes da criação do mundo” (Ef 1,4).
Mas porque, se tivesse feito estas afirmações, despertaria a atenção do leitor para a investigação dos ensinamentos que agora é mister discutir com mais extensão e esmero devido à censura do erro pelagiano, pareceu-me que então devia fazer com brevidade o que era suficiente, salvaguardando, como disse, a profundidade da sabedoria e ciência de Deus e sem prejuízo de outras causas. Considerando estas causas, julguei que devia discorrer não naquele momento, mas em outra ocasião e mais oportunamente.