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quarta-feira, maio 10, 2006

Capítulo 5

Capítulo 5 - A gratuidade refere-se também à fé; não somente aos bens da natureza

9. O que esses irmãos pensam, ou seja: “Quando se trata do começo da fé, não se pode dizer: O que possuis que não recebeste?, porque permaneceu na própria natureza, embora contaminada, o que lhe foi dado quando sã e perfeita” (Carta de Hilário, n. 4), não deve ser entendido para o que pretendem valorizar, se se pensa a razão pela qual o Apóstolo fez esta afirmação: Pois tratava ele de que ninguém se gloriasse no homem, já que haviam surgido dissensões entre os cristãos de Corinto a ponto de dizerem: “Eu sou de Paulo!' ou “Eu sou de Apolo!' ou “Eu sou de Cefas!” e por isso veio a dizer: O que é loucura no mundo, Deus o escolheu para confundir os sábios; e o que é fraqueza no mundo, Deus o escolheu para confundir o que é forte; e o que no mundo é vil e desprezado, o que não é, Deus escolheu para reduzir a nada o que é, a fim de que nenhuma criatura se possa vangloriar diante de Deus. Nestas palavras percebe-se a intenção muito clara do Apóstolo contra a soberba humana, a fim de que ninguém se glorie no homem e, portanto, nem em si mesmo.
Finalmente, depois de dizer: A fim de que nenhuma criatura se possa gloriar diante de Deus, para mostrar em que o homem se deve gloriar, acrescentou imediatamente: E por ele que vós sois em Cristo Jesus, que se tornou para nós sabedoria proveniente de Deus, justiça, santificação e redenção, a fim de que, como diz a Escritura, “aquele que se gloria, glorie-se no Senhor” (1Cor 1,12.27-31). Estas palavras foram o apoio para manifestar sua intenção para dizer em repreensão: Visto que ainda sois carnais. Com efeito, se há entre vós invejas e rixas, não sois carnais e não vos comportais de maneira meramente humana? Quando alguém declara: “Eu sou de Paulo”, e outro diz: “Eu sou de Apolo” não procedeis de maneira meramente humana? Quem é, portanto, Apolo? Quem é Paulo? Servidores, pelos quais fostes levados à fé; cada um deles aqui segundo os dons que o Senhor lhe concedeu. Eu plantei, Apoio regou; mas era Deus quem fazia crescer. Assim, pois, aquele que planta, nada é; aquele que rega, nada é; mas importa somente Deus que dá o crescimento.
Percebeis que o Apóstolo não pretende outra coisa, senão que o homem se humilhe e apenas Deus seja exaltado? Pois, ao se referir aos que são plantados ou regados, afirma que nada são o que planta ou que rega, mas o que dá o crescimento, ou seja, Deus. O mesmo diz se aquele planta e este rega; não devem atribuir a si mesmos, mas ao Senhor, ao afirmar: Cada um deles agiu segundo os dons que o Senhor lhe concedeu. Eu plantei, Apoio regou.
Persistindo no mesmo propósito, vem a dizer: Por conseguinte, ninguém procure nos homens motivo de orgulho (1Cor 5-6.2 1). Pois dissera antes: Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor Depois destas e algumas outras palavras, que com estas se relacionam, sua intenção o leva a dizer: Nisso tudo, irmãos, eu me tomei como exemplo juntamente com Apolo por causa de vós, a fim de que aprendais a nosso respeito a máxima: “Não ir além do que está escrito” e ninguém se ensoberbeça, tomando o partido de um contra o outro. Pois quem é que te distingue? Que é que possuis que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que haverias de te ensoberbecer como se não o tivesses recebido? (1Cor 4,6-7).
10.
Conforme entendo, seria o maior absurdo supor que, nesta mais que evidente intenção do Apóstolo de falar contra a soberba humana para evitar que ninguém se glorie nos homens, mas em Deus, esteja ele se referindo aos dons naturais, seja os da natureza cabal e perfeita outorgada na primeira condição, seja quaisquer vestígios da natureza decaída. Porventura, mediante tais dons comuns a todos, os homens se distinguem uns dos outros? No referido texto, o Apóstolo disse primeiramente:Quem é que te distingue? e acrescentou à continuação: Que é que possuis que não tenhas recebido?
Pois uma pessoa cheia de orgulho poderia dizer a outra: “Distinguem-me minha fé, minha justiça” ou coisa semelhante. Vindo ao encontro de tais pensamentos, o bom Doutor diz: “O que possuis que não recebeste? E de quem recebeste, senão daquele que te distingue do outro, ao qual não concedeu o que te concedeu?”. “E, se o recebeste, diz ele, por que te glorias como se não o tivesses recebido?” Pergunto eu: não insiste o Apóstolo em que alguém que se gloria, glorie-se no Senhor? Mas nada tão oposto a este sentido que o gloriar-se alguém de seus merecimentos, como se ele mesmo praticasse tais obras meritórias e não pela graça de Deus. Refiro-me à graça que distingue os bons dos maus, não à que é comum aos bons e aos maus.
Portanto, se a graça representa os atributos da natureza, que nos faz animais racionais e nos distingue dos simples animais; se ela representa os atributos da natureza, que causa diferenças entre os homens normais e os disformes ou entre os inteligentes e os retardados, e assim outros atributos semelhantes, aquela pessoa, repreendida pelo Apóstolo, não se ensoberbecia contra um animal ou contra alguma pessoa no tocante a algum dote natural, ainda que fosse de ínfimo valor. Mas orgulhava-se de algum bem referente à vida de santidade, não atribuindo a Deus mas a si, e por isso mereceu ouvir: Quem é que te distingue? Que é que possuis que não tenhas recebido?
Mesmo sendo dom natural o poder ter fé, acaso o é também possuí-la? Pois nem todos têm fé (2Ts 3,2), embora todos possam tê-la. O Apóstolo não diz: “O que podes ter que não recebeste para poder possuí-la?”. Mas diz: Que é que não possuis que não recebeste? Por conseguinte, o ser capaz de ter fé, assim como ser capaz de ter caridade, é próprio da natureza humana. Mas ter fé, assim como ter caridade, é próprio da graça nos que crêem.
A natureza, que nos dá a possibilidade de ter fé, não distingue um ser humano do outro, mas a fé distingue um crente do não crente. Por isso, quando se diz: Quem é que te distingue? Que é que possuis que não recebeste? quem ousa afirmar: “Tenho a fé por minha iniciativa; portanto, não a recebi”? Tal pessoa contradiz esta verdade evidente, não porque o crer ou não crer não dependa do livre-arbítrio humano, mas porque a vontade nos eleitos é preparada pelo Senhor (Pr 8, seg. LXX). Portanto, no campo da fé, que depende da vontade, procedem as palavras: Quem é que te distingue? Que é que possuis que não recebeste?