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quarta-feira, maio 10, 2006

Capítulo 3

Capítulo 3 - O autor confessa seu antigo erro sobre a graça — Texto das “Retratações”

7. Não pensava assim aquele piedoso e humilde Doutor - refiro-me ao bem-aventurado Cipriano -, que disse: “Não há razão para nos gloriarmos, quando nada é nosso” (A Quirino, 1,111, c.4). E para demonstrá-lo, apresentou como testemunha o Apóstolo, que diz: Que é que possuis que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que haverias de te ensoberbecer como se não o tivesses recebido? (1Cor 4,7). Servindo-me principalmente deste testemunho, convenci-me também do erro, quando nele laborava, julgando que a fé, que nos leva a crer em Deus, não era dom de Deus, mas se originava em nós por nossa iniciativa, e mediante ela implorávamos os dons de Deus para viver sóbria, justa e piedosamente neste mundo.
Não julgava que a fé fosse precedida pela graça de Deus, de sorte que por ela recebêssemos o que pedíssemos convenientemente, mas pensava que não podíamos ter fé, se não a precedesse o anúncio da verdade. Porém, o acolhimento à fé era iniciativa nossa, uma vez recebido o anúncio do evangelho e julgava ser merecimento nosso. Alguns opúsculos de minha lavra, escritos antes de ser ordenado bispo, revelam com clareza este erro. Entre eles está o mencionado em vossas cartas, onde se encontra o comentário sobre algumas proposições da Carta aos Romanos.
Finalmente, ao fazer a revisão de todas as minhas obras e ao consignar por escrito esta revisão, de cuja obra já terminara dois livros antes que tivesse recebido vossos escritos mais extensos, e tendo chegado à revisão do referido livro no primeiro volume, assim me expressei: “E discutindo também sobre o que Deus elegeu no não ainda nascido, ao qual disse que serviria o maior, e o que reprovou no mesmo mais idoso também ainda não nascido — aos quais, embora escrito muito mais tarde, faz referência o testemunho profético: Amei Jacó e aborreci Esaú (Rm 9,13; Ml 1,3)—, cheguei a este raciocínio e disse: “Deus não elegeu na sua presciência as obras de cada um, que ele mesmo haveria de realizar, mas elegeu a fé conforme à mesma presciência, de modo que, conhecendo previamente o que nele havia de crer, escolheu-o para dar-lhe o Espírito Santo, e assim pela prática das boas obras, obtivesse também a vida eterna.
Ainda não pesquisara com toda diligência, nem ainda descobrira o que fosse a eleição da graça, da qual diz o mesmo Apóstolo: Constituiu-se um resto segundo a eleição da graça (Rm 11,5). Esta não é graça, se a precede qualquer mérito, e o que se concede não como graça, mas como dívida, concede-se como recompensa aos méritos e não é concessão. Por conseguinte, o que disse à continuação: “Pois diz o mesmo Apóstolo: E o mesmo Deus que realiza tudo em todos (1 Cor 12,6), nunca se disse que Deus crê todas as coisas em todos”. E acrescentei em seguida: “Porque cremos, é mérito nosso, mas fazer o bem pertence àquele que dá aos crentes o Espírito Santo”. No entanto, não o diria, se já soubesse que a própria fé se encontra entre os dons de Deus outorgados no mesmo Espírito.
Portanto, ambas as coisas as realizamos pelo assentimento da liberdade, e ambas, no entanto, são concedidas pelo Espírito de fé e de caridade. Pois, não somente a caridade, mas como está escrito: Amor e fé da parte de Deus, o Pai, e do Senhor Jesus Cristo (Ef 6,23). E também o que afirmei um pouco depois: “Pertence a nós o querer e o crer, mas a ele conceder aos que querem e crêem a faculdade de praticar o bem pelo Espírito Santo, pelo qual a graça foi derramada em nossos corações”, é verdade, mas de acordo com o mesmo processo, ou sei a, ambas são dele, porque prepara a vontade, e ambas são nossas, porque não se realizam sem o nosso assentimento. E também o que disse depois: “Não podemos nem querer, se não somos chamados e, ao querermos após ser chamados, não bastam a nossa vontade e a nossa corrida, se Deus não der forças aos que correm e os leve aonde os chama. E o que acrescentei em seguida: Não depende, portanto, daquele que quer, nem daquele que corre, mas de Deus, que faz misericórdia (Rm 9,16), para podermos praticar o bem, é verdade absoluta.”
Mas dissertei com muita brevidade acerca da vocação que ocorre segundo o desígnio de Deus. Pois não é assim a vocação de todos, mas somente dos eleitos. Por isso, quando disse um pouco depois: “Assim como naqueles que Deus elege, a fé, e não as obras, dá início ao mérito a fim de que pelo dom de Deus se pratique o bem, assim naqueles que ele condena, a infidelidade e a impiedade são o princípio do demérito, a fim de que pelo mesmo castigo também se pratique o mal”, essas palavras são expressão da verdade absoluta. Mas não disse que o mérito da fé seja também um dom de Deus nem julguei que seria um assunto a averiguar.
E afirmei em outro lugar: De modo que ele faz misericórdia a quem quer e endurece a quem ele quer (Rm 9,18) e deixa-o para que pratique o mal. Mas a misericórdia é outorgada ao mérito precedente da fé, e o endurecimento, à iniqüidade precedente. Isto é indubitavelmente certo, mas devia-se investigar ainda se o mérito da fé provém da misericórdia de Deus, isto é, se esta misericórdia favorece o homem porque crê ou favoreceu para que cresse. Pois lemos o que diz o Apóstolo: Como quem alcançou misericórdia para ser fiel (1 Cor 7,25). Não diz: porque era fiel. Portanto, a misericórdia é na verdade concedida ao que é fiel, mas foi concedida também para ser fiel.
E assim, com toda verdade, afirmei em outro lugar do mesmo livro: “Porque se não é pelas obras, mas pela misericórdia de Deus que somos chamados para ser fiéis e, sendo fiéis, é concedida para praticarmos o bem, esta misericórdia não se há de negar aos pagãos”; se bem é certo que tratei ali com mais brevidade da vocação que se realiza segundo o desígnio de Deus” (Retratações, 1, cap. 23 nn. 3-4).