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quarta-feira, maio 10, 2006

Capítulo 2

Capítulo 2 - O princípio da fé é também dom de Deus.

3. Devemos demonstrar primeiramente que a fé, que nos faz cristãos, é dom de Deus, e o faremos, se possível, com mais brevidade do que empregamos em tantos e volumosos livros. Mas agora vejo que devo dar uma resposta aos que dizem que os testemunhos divinos, mencionados por nós e concernentes ao assunto, valem apenas para provar que podemos adquirir o dom da fé por nós mesmos, ficando para Deus só o seu crescimento em virtude do mérito com o qual ela começou por nossa iniciativa.
Com esta crença não se desvia da sentença que Pelágio foi impelido a condenar no concílio da Palestina, como o atestam as próprias atas: “A graça de Deus é-nos concedida de acordo com nossos méritos”. Esta doutrina advoga que não se atribui à graça de Deus o começar a crer, mas ela nos é acrescentada para que acreditemos mais plena e perfeitamente. Assim, primeiramente oferecemos a Deus o começo de nossa fé para receber o acréscimo e qualquer outra coisa que lhe peçamos em nossa fé.
4. Mas por que não ouvir as palavras do Apóstolo que contrariam esta doutrina: Quem primeiro lhe fez o dom para receber em troca? Porque tudo é dele, por ele e para ele. A ele a glória pelos séculos! Amém! (Rm 11,35-36). Portanto, o próprio início de nossa fé, de quem procede senão dele? E não se há de admitir que todas as coisas procedem dele exceto esta, mas, sim, tudo é dele, por ele e para ele. E quem dirá que aquele que já começou a crer, não tem merecimento junto àquele no qual crê? Daí se concluiria o poder dizer-se que as demais graças seriam acrescentadas como retribuição divina aos que já têm merecimento, o que seria afirmar que a graça de Deus nos é outorgada de acordo com nossos merecimentos. Evitando que esta proposição fosse condenada, ele mesmo a condenou.
Conseqüentemente, quem pretender evitar esta sentença condenável, entenda a verdade contida nas palavras do Apóstolo, que diz: Pois vos foi concedido, em relação a Cri sto, a graça de não só crerdes nele, mas também depor ele sofrerdes (F1 1,29). O texto revela que ambas as coisas são dom de Deus, porque disse que ambas as coisas são concedidas. Não diz: “A fim de que nele acrediteis mais plena e perfeitamente”, mas de crerdes nele. E não disse também que alcançou a misericórdia para ser mais fiel, mas para ser fiel (l Cor. 7,25), porque sabia não ter oferecido a Deus o começo da fé por sua iniciativa e ter recebido dele posteriormente, como retribuição, o seu crescimento. Fê-lo apóstolo aquele que o fez crer.
Estão consignados também na Escritura os começos de sua fé e são muito conhecidos através da leitura nas igrejas. Segundo estes dados, estando afastado da fé que combatia e da qual era acérrimo inimigo, converteu-se repentinamente para a mesma fé por uma graça especial. Converteu-o aquele a quem foi dito pelo profeta: Porventura não nos tornarás a dar a vida? (Sl 84,7), para que não apenas o que não queria crer, passasse a crer de livre vontade, mas também de perseguidor passasse a sofrer perseguição em defesa da fé, que ele perseguia. Foi-lhe concedido pelo Cristo não somente que nele acreditasse, mas também que por ele sofresse.
5. E assim, mostrando o valor desta graça, que não é concedida de acordo com os méritos, mas é causa de todos os bons méritos, diz: Não como se fôssemos dotados de capacidade que pudéssemos atribuir a nós mesmos, mas é de Deus que vem a nossa capacidade (2Cor 3,5). Ouçam estas palavras, com atenção, e reflitam sobre elas os que pensam atribuir a nós o começo da fé e a Deus o seu crescimento.
Quem não vê que primeiro é pensar e depois crer? Ninguém acredita em algo, se antes não pensa no que há de crer. Embora certos pensamentos precedam de um modo instantâneo e rápido a vontade de crer, e esta vem em seguida e é quase simultânea ao pensamento, é mister que os objetos da fé recebam acolhida depois de terem sido pensados. Assim acontece, embora o ato de crer nada mais seja que pensar com assentimento. Pois, nem todo o que pensa, crê, havendo muitos que pensam, mas não crêem; mas todo aquele que crê, pensa, e pensando crê e crê pensando.
Portanto, no tocante à religião e à piedade, do qual falava o Apóstolo, se não somos idôneos para pensar coisa alguma pela nossa capacidade, mas nossa capacidade vem de Deus, conseqüentemente não somos capazes de crer em alguma coisa pelas nossas forças, o que não é possível senão pelo pensamento, mas nossa capacidade, mesmo para o inicio da fé, vem de Deus.
Do que se conclui, portanto, que ninguém é capaz por si mesmo de começar ou consumar qualquer boa obra, o que aqueles nossos irmãos aceitam como vossos escritos o manifestam, e que, para começar e consumar toda boa obra, nossa capacidade vem de Deus. Do mesmo modo, ninguém é capaz por si mesmo ou de começar a ter fé ou de nela crescer, mas nossa capacidade vem de Deus. Porque, se não existe fé se não há pensamento, também não somos capazes de pensar algo como de nós mesmos, mas nossa capacidade vem de Deus.
6. Deve-se evitar, amados irmãos no Senhor, que o homem se engrandeça contra Deus ao dizer que é capaz de fazer o que ele prometeu. Não foi prometida a Abraão a fé dos pagãos e ele, glorificando a Deus, não acreditou plenamente porque tem o poder de cumprir o que prometeu? (Rm 4,20-2 1) Portanto, é autor da fé dos pagãos aquele que tem poder de cumprir o que prometeu.
Assim, se Deus é autor de nossa fé, agindo de modo maravilhoso em nossos corações para que creiamos, haverá razão para temer que ele não seja o autor de toda a fé, de sorte que o homem atribua a si mesmo o começo da fé, para merecer apenas receber dele o seu aumento?
Tende em conta que se o processo é diferente e assim a graça de Deus nos seja concedida em vista de nossos méritos, esta graça não é mais graça. Com efeito, neste caso é devolvida como paga e não é dada gratuitamente. Pois é devida ao crente para que sua fé cresça pelo auxílio do Senhor e a fé aumentada seja a recompensa da fé começada. Não se percebe, quando se diz isto, que esta recompensa é imputada aos crentes não como uma graça, mas como uma dívida.
Se o homem pode criar para si o que não possuía antes e pode aumentar o que criou, não vejo outra razão para não se lhe atribuir todo o mérito da fé, a não ser o não poder se opor aos testemunhos mais que evidentes que provam ser dom de Deus a virtude da fé, de onde se origina a piedade. Entre outros, este: De acordo com a medida da fé que Deus dispensou a cada um (Rm 12,3), e este outro: Aos irmãos, paz, amor e fé da parte de Deus, o Pai, e do Senhor Jesus Cristo (Ef 6,23), e outros semelhantes.
Não querendo opor-se a testemunhos tão evidentes, mas querendo atribuir a si o fato de crer, o homem quer fazer uma composição com Deus, arrogando-se uma parte da fé e deixando-lhe outra parte. E o que é mais insolente: arroga para si a primeira parte e atribui a Deus a seguinte, e no que diz ser de ambos, em primeiro lugar e a Deus em segundo plano.