Capítulo 5
A Queda do Homem
Obedecer é o ministério adequado de uma alma racional.(Montaigne 2, 12.)
A resposta cristã à pergunta proposta no último capitulo está contida na doutrina da Queda. Segundo essa doutrina, o homem é agora um horror para Deus e para si mesmo,uma criatura mal ajustada ao universo, não porque Deus o tenha feito assim, mas porque ele se fez assim ao abusar de seu livre-arbítrio. Esta é a única função da doutrina para mim. Ela existe como proteção contra duas teorias sub-cristãs da origem do mal - o monismo, segundo o qual o próprio Deus, estando "acima do bem e do mal", produz imparcialmente os efeitos aos quais damos esses dois nomes, e o dualismo, que afirma que Deus produz o bem, enquanto outro Poder igual e independente produz o mal. O cristianismo afirma que Deus é bom em oposição a esses dois pontos de vista. Que Ele fez todas as coisas boas e por causa da excelência das mesmas; que uma das boas coisas que Ele fez, a saber, o livrearbítrio das criaturas racionais, por sua própria natureza incluía a possibilidade do mal; e as criaturas, dispondo desta possibilidade, se tomaram más.
Esta função - que é a única que permito à doutrina da Queda - deve ser distinguida de duas outras que ela é às vezes representada como realizando, mas que eu rejeito. Em primeiro lugar, não penso que a doutrina responda à pergunta: "Foi melhor que Deus tivesse criado ou não?" Essa é uma questão que já declinei. Desde que creio que Deus é bom, estou certo de que se esta pergunta tem sentido, a resposta deve ser Sim. Mas duvido que ela tenha qualquer significado: e mesmo que o tenha, estou certo de que a resposta não pode ser alcançada por meio dos critérios de valor que os homens possam apresentar. Em segundo plano, não penso que a doutrina da Queda possa ser usada para mostrar que ela é "justa", em termos de justiça retributiva, a fim de punir os indivíduos pelas faltas de seus ancestrais remotos.
Algumas formas da doutrina parecem envolver isto, mas ponho em dúvida a idéia de que qualquer delas, como entendida por seus intérpretes, realmente indique tal coisa. Os Pais podem algumas vezes afirmar que somos castigados pelo pecado de Adão: mas com mais freqüência dizem que nós pecamos "em Adão". Pode ser impossível descobrir o que queriam dizer com isso, ou decidir que a idéia deles estava errada. Mas não posso rejeitar as afirmações deles como um simples idiomatismo. Com sabedoria, ou insensatez, eles acreditavam que nós estávamos realmente - e não simplesmente por ficção legal - envolvidos no ato de Adão. A tentativa de formular esta crença, afirmando que estávamos "em" Adão de modo físico - sendo Adão o primeiro veículo do "plasma do germe imortal" - pode ser inaceitável: mas trata-se naturalmente de um outro caso o fato de a crença ser em si mesma simplesmente uma confusão ou um vislumbre real das realidades espirituais além de nossa compreensão normal.
No momento, porém, esta questão não surge; pois, como disse, não tenho intenção de argumentar que a transmissão ao homem moderno das incapacidades contraídas pelos seus ancestrais remotos seja um espécime de justiça retributiva. Para mim, ele é mais um espécime daquelas coisas necessariamente envolvidas na criação de um mundo estável como consideramos no Capítulo II. Teria sido sem dúvida possível para 35
Deus remover através do milagre os resultados do primeiro pecado cometido por um ser humano; mas isto não teria resultado em nada muito positivo a não ser que Ele estivesse preparado para remover os resultados do segundo pecado, do terceiro, e, assim por diante, para sempre. Se os milagres cessassem, então mais cedo ou mais tarde poderíamos ter chegado à nossa lamentável situação atual: caso contrário, então um mundo dessa for- ma calçado e corrigido pela interferência divina, viria a ser um mundo em que nada importante jamais dependeria da escolha humana, e no qual a própria escolha em si logo cessaria por causa da certeza de que uma das alternativas aparentes a você não levaria a resultado algum, não sendo portanto realmente uma alternativa. Como vimos, a liberdade do enxadrista no jogo depende da rigidez das divisões do tabuleiro e dos movimentos feitos.
Ao isolar o que acredito ser a verdadeira importância da doutrina do homem decaído, vamos considerar agora a própria doutrina. A história de Gênesis (plena da mais profunda sugestão) trata da maçã mágica do conhecimento; mas na doutrina que veio a desenvolverse a mágica inerente à maçã saiu praticamente de cena, e a história passou a ser simplesmente de desobediência. Tenho o mais profundo respeito até mesmo pelos mitos pagãos, e ainda mais pelos das Santas Escrituras. Não duvido portanto que a versão que enfatiza a maçã mágica e reúne as árvores da vida e do conhecimento, contém uma verdade mais profunda e sutil do que aquela que faz da maçã única e exclusivamente um penhor de obediência. Presumo que o Espírito Santo não teria permitido que esta última surgisse na Igreja e conquistasse a aceitação de grandes doutores a não ser que fosse também verdadeira e útil. É esta versão que vou discutir, porque, embora suspeite que a versão primitiva seja muito mais profunda, sei que pelo menos eu não posso penetrar as suas profundidades. Vou dar aos meus leitores não o melhor absoluto, mas o melhor de que disponho.
Na doutrina desenvolvida foi então alegado que o homem, como Deus o fez, era completamente bom e completamente feliz, mas que ele desobedeceu a Deus e tomou-se o que agora vemos. Muitas pessoas acham que esta proposição foi provada como sendo falsa pela ciência moderna. "Sabemos agora", é dito, "que longe de ter decaído de um estado primevo de virtude e felicidade, os homens elevaram-se vagarosamente da brutalidade e selvageria." Parece haver completa confusão aqui. Bruto e selvagem são termos que pertencem a essa classe infeliz de palavras algumas vezes usadas retoricamente, como reproche, e outras cientificamente, como termos descritivos; e o argumento pseudocientífico contra a Queda depende de uma confusão entre esses usos. Se ao dizer que o homem elevou-se da brutalidade você está simplesmente afirmando que ele descendia fisicamente dos animais, não tenho objeção. Mas não se segue a isso que quanto mais você retroceda tanto mais brutal -no sentido de perverso ou miserável - descobrirá que ele foi. Nenhum animal possui virtude moral: mas não é verdade que todo comportamento animal seja da espécie que chamaríamos de "perverso" caso praticado por homens. Pelo contrário, nem todos os animais tratam as outras criaturas de sua própria espécie como o homem trata outros homens. Nem todos são glutões e lascivos como nós, e animal algum é ambicioso.
Assim também, se disser que os primeiros homens eram "selvagens", significando com isso que seus artefatos eram poucos e grosseiros como os dos modernos "selvagens", pode muito bem estar certo. Mas se afirmar que eram "selvagens" no sentido de serem lascivos, ferozes, cruéis e traiçoeiros, estará ultrapassando a sua evidência, por duas razões. Em primeiro lugar, os modernos antropólogos e missionários estão menos inclinados do que seus pais a endossarem sua descrição desfavorável até mesmo do selvagem moderno.
Em segundo lugar, você não pode discutir a partir dos artefatos dos primeiros homens que 36
eles eram em todos os respeitos como os povos contemporâneos que fabricam artefatos similares.
Devemos guardar-nos aqui de uma ilusão que o estudo do homem pré-histórico parece naturalmente gerar.
O homem pré-histórico, exatamente por ser pré-histórico, é conhecido por nós unicamente através dos objetos materiais feitos por ele ou antes pela escolha casual dentre as coisas mais duráveis que fez. Não é falta dos arqueólogos o fato de não terem melhor evidência: mas esta escassez constitui uma tentação contínua para inferir mais do que temos qualquer direito de inferir, supor que a comunidade que fabricou os artefatos fosse superior em todos os aspectos. Qualquer um pode ver que a suposição é falsa; ela levaria à conclusão que as classes ociosas de nossa época fossem em todos os respeitos superiores às da era vitoriana. É claro que os homens pré-históricos que fabricaram a cerâmica mais inferior poderiam ter sido também justamente os que fizeram a melhor poesia, e nunca saberíamos disso. A suposição se toma ainda mais absurda quando comparamos os homens
pré-históricos com os modernos selvagens. A mesma crueza dos artefatos nada lhe diz aqui sobre a inteligência ou virtudes dos fabricantes. O que é aprendido mediante a experiência e o erro deve começar pela simplicidade, qualquer que seja o caráter do novato. O mesmo vaso que provaria ser o seu fabricante um gênio caso se tratasse do primeiro vaso feito no mundo, afirmaria ser ele um idiota se fabricado depois de milênios de trabalhos em cerâmica. Toda a moderna estimativa do homem primitivo se acha baseada sobre essa idolatria dos artefatos que é um grande pecado corporativo de nossa civilização.
Esquecemo-nos de que nossos ancestrais pré-históricos fizeram todas as descobertas mais úteis, exceto a do clorofórmio, que jamais foi feita. Devemos a ele a linguagem, a família, as vestimentas, o uso do fogo, a domesticação dos animais, a roda, o navio, a poesia e a agricultura.
A ciência, portanto, nada tem a dizer seja contra ou a favor da doutrina da Queda.
Uma dificuldade mais filosófica foi levantada pelo moderno teólogo a quem os estudiosos do assunto muito devem.1 Este autor salienta que a idéia do pecado pressupõe uma lei contra a qual pecar: e desde que levaria séculos para o "instinto de massa" cristalizar-se em costume e o costume tomar-se lei, o primeiro homem - se houve jamais um ser que pudesse ser assim descrito - não poderia ter cometido o primeiro pecado. Este argumento supõe que a virtude e o instinto de massa geralmente coincidem, e que o "primeiro pecado" foi essencialmente um pecado social. Mas a doutrina tradicional aponta para um pecado contra Deus, um ato de desobediência, e não um pecado contra o próximo. E, certamente, se vamos manter a doutrina da Queda em qualquer sentido real, devemos considerar o grande pecado num nível mais profundo e intemporal do que o da moralidade social.
Este pecado foi descrito por Santo Agostinho como o resultado do orgulho, do movimento através do qual uma criatura (isto é, um ser essencialmente dependente cujo princípio de existência não é contido em si mesmo mas em outro) tenta estabelecer-se por si mesma, existir por si mesma.2 Um pecado assim não exige condições sociais complexas, nenhuma experiência prolongada, nem grande desenvolvimento intelectual. A partir do momento em que uma criatura passa a ter percepção de Deus como Deus e de si mesma como o "eu", a terrível alternativa de escolher a Deus ou ao "eu" como centro se abre para
1 N. P. Williams, The Ideai fj the Fall and of Originai sin, pág. 516.
2 De Civitate Dei XIV, xiii.
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ela. Este pecado é cometido diariamente pelas crianças pequenas e pelos camponeses ignorantes, assim como por pessoas sofisticadas; tanto pelos solitários como pelas pessoas que vivem em sociedade; trata-se da Queda na vida de cada indivíduo, e, em cada dia de cada vida individualmente, o pecado básico por detrás de todos os pecados particulares: neste justo momento você e eu estamos cometendo, prestes a cometer, ou arrependendo-nos dele. Ao acordar, tentamos colocar o novo dia aos pés de Deus; antes de termos acabado de fazer a barba ele porém se torna o nosso dia e a participação de Deus nele é tida como um tributo que devemos pagar de "nosso próprio" bolso, uma dedução do tempo que sentimos deveria ser "nosso". Um indivíduo começa um novo emprego com um sentimento intenso de devoção e talvez durante a primeira semana ele mantenha essa atitude, cumprindo a sua devoção, aceitando os prazeres e sofrimentos da mão de Deus, conforme surgirem, como se fossem simples "acidentes". Mas na segunda semana ele já está começando a "conhecer os truques" e na terceira já fez o seu próprio plano estabelecendo o seu papel no trabalho.
Quando pode seguir esse plano sente que não está auferindo mais do que o que lhe cabe por direito e se isso não acontece sente-se prejudicado, esbulhado.
A pessoa que ama, em obediência a um impulso imprevisto, que pode estar cheio de boa vontade e do desejo e necessidade de não se esquecer de Deus, abraça o ser amado e então, inocentemente, experimenta uma emoção de prazer sexual; mas o segundo abraço pode ter em vista esse prazer, pode ser um meio de alcançar um fim, pode ser o primeiro passo da estrada em declive que leva à consideração de um semelhante como uma coisa, um instrumento a ser usado para o seu prazer. Dessa forma a flor da inocência, o elemento de obediência e disposição para aceitar aquilo que vier, é eliminado de toda atividade.
Os pensamentos experimentados por causa de Deus - como aquele em que nos empenhamos no momento - são continuados como se fossem um fim em si mesmos, e a seguir como se nosso prazer em pensar fosse o fim, e finalmente como se nosso orgulho ou celebridade fosse o fim. Desse modo o dia inteiro, e todos os dias de nossa vida, estamos nos desviando, escorregando, afastando - como se Deus fosse, para nossa consciência presente, um plano inclinado suave no qual não há apoio.
Na verdade, nossa natureza agora é tal que precisamos escapar; e o pecado, por ser inevitável, pode ser venial. Mas não foi Deus que nos fez assim. A gravitação para longe de Deus, "a jornada em direção ao ego habitual", deve ser, ao que pensamos, um resultado da Queda. O que aconteceu exatamente quando o homem caiu, não sabemos; mas se é legítimo fazer conjeturas, ofereço o seguinte quadro: um "mito" no sentido socrático,3 uma narrativa plausível.
Durante longos séculos Deus aperfeiçoou a forma animal que iria tomar-se o veículo da humanidade e a imagem de Si mesmo. Ele deu-lhe mãos cujo polegar podia ser aplicado a cada um dos dedos, e mandíbula, dentes e garganta articulados, assim como um cérebro suficientemente complexo para executar todos os movimentos materiais dando Julgar ao pensamento racional. A criatura pode ter existido durante séculos neste estado antes de tomar-se homem: pode ter sido até mesmo inteligente o bastante para fazer coisas que o arqueólogo moderno aceitaria como prova de sua humanidade. Mas não passava de um animal porque todos os seus processos físicos eram dirigidos a fins puramente materiais e naturais. Então, na plenitude do tempo, Deus fez descer sobre este organismo, tanto na sua 3 Isto é, um relato do que pode ter sido o fato histórico. Não devendo ser Confundido com "mito" na opinião do Dr. Niebuhr (1.e., uma representação simbólica da verdade não-histórica.)
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psicologia como fisiologia, uma nova espécie de consciência que podia dizer "eu" e "mim", que podia olhar para si mesma como um objeto, que conhecia Deus, que podia fazer juízos quanto à verdade, beleza e bondade, e que estava tão acima do tempo que podia percebê-lo passar.
Esta nova consciência governava e iluminava o organismo inteiro, enchendo de luz cada uma de suas partes; não sendo, como o nosso, limitado a uma seleção dos movimentos existentes numa parte dele, a saber, o cérebro. O homem era então todo consciência.
O iogue moderno alega - seja com verdade ou falsamente - ter sob controle essas funções que para nós fazem praticamente parte do mundo exterior, como a digestão e a circulação. O primeiro homem tinha eminentemente este poder. Seus processos orgânicos obedecem à lei da sua própria vontade e não à da natureza. Seus órgãos enviavam apetites ao tribunal da vontade, não porque fossem obrigados a isso, mas porque assim o desejavam. O sono não era para ele o estupor em que caímos, mas um repouso consciente e voluntário - permanecia acordado para gozar do prazer e necessidade do sono. Desde que os processos de decadência e reparo de seus tecidos eram da mesma forma conscientes e obedientes, não é fantasioso supor que a duração de sua vida fosse um aspecto que ficava praticamente a seu critério.
Pelo fato de comandar inteiramente a si mesmo, ele dominava todas as formas inferiores de vida com as quais entrava em contato. Encontramos ainda hoje alguns raros indivíduos que possuem um misterioso poder para domesticar feras. O homem paradisíaco gozava deste poder de maneira notável. O velho quadro dos animais brincando diante de Adão e fazendo-lhe festas pode não ser inteiramente simbólico. Até mesmo agora mais animais do que podemos supor estão prontos a adorar o homem se lhes for dada uma oportunidade razoável: pois o homem foi feito para ser o sacerdote e mesmo, num certo sentido, o Cristo, dos animais - o mediador através do qual eles apreendem tanto do esplendor divino quanto sua natureza irracional permite. E Deus, para tal homem, não representava um plano inclinado, escorregadio. A nova consciência tinha sido feita para repousar em seu Criador, e assim fez.
Por mais rica e variada que fosse a experiência do homem em relação a seus semelhantes (ou semelhante) quanto à caridade e amizade, ao amor sexual, ou quanto aos animais ou ao mundo que o rodeava, pela primeira vez reconhecido como belo e terrível, Deus vinha em primeiro lugar no seu amor e pensamentos, e isso sem qualquer esforço penoso. Num perfeito movimento cíclico, o ser, o poder e a alegria, desciam de Deus para o homem na forma de amor obediente e adoração extática: e neste sentido, embora não em todos, o homem era então verdadeiramente o filho de Deus, o protótipo de Cristo, representando perfeitamente na alegria e relaxamento de todas as faculdades e sentidos aquela rendição filial que Nosso Senhor representou nas agonias da crucificação.
Julgado pelos seus artefatos e talvez até mesmo pela sua linguagem, esta criatura abençoada era sem dúvida um selvagem. Tudo o que a experiência e a prática podem ensinar estava ainda para ser aprendido: se cortava gravetos, com certeza era muito desajeitado. Pode ter sido absolutamente incapaz de expressar de forma conceitual sua experiência paradisíaca. Tudo isso é irrelevante. De nossa infância, podemos lembrar que antes dos mais velhos nos considerarem capazes de "compreender" qualquer coisa, já tínhamos experiências espirituais tão puras e momentosas como quaisquer outras que tenhamos tido desde então, embora não fossem naturalmente tão ricas em seu contexto real.
Do próprio cristianismo podemos aprender que existe um nível - a longo prazo o único 39 nível de importância - em que os eruditos e os adultos não têm qualquer vantagem sobre os simples e as crianças. Não tenho dúvidas de que se o homem paradisíaco surgisse agora entre nós, iríamos considerá-lo um completo selvagem, uma criatura a ser explorada ou, pelo menos, tratada com condescendência. Apenas um ou dois, e esses estariam entre os mais santos dentre nós, iriam lançar um segundo olhar para essa criatura nua, barbuda, de fala arrastada: mas eles, dentro de poucos minutos, cairiam a seus pés.
Não sabemos quantas dessas criaturas Deus fez, nem por quanto tempo continuariam no estado paradisíaco. Mas, mais cedo ou mais tarde, elas caíram. Alguém ou alguma coisa lhes sussurrou que poderiam tornar-se como deuses - que podiam deixar de manter Suas vidas na direção do Criador e aceitar todos os seus prazeres como dádivas não convencionais, como "acidentes" (no sentido lógico) surgidos no decorrer de uma vida dirigida à adoração de Deus e não a esses prazeres.
Da mesma forma que o jovem deseja uma mesada do pai, que possa considerar como sua, com a qual faz seus próprios planos (e com justiça, pois o pai é afinal de contas um semelhante) eles também desejavam agir por conta própria, cuidar de seu futuro, planejar para o seu prazer e segurança, ter um meum do qual sem dúvida pagariam um tributo razoável a Deus em termos de tempo, atenção, e amor, mas que em todo caso era deles e não dEle. Eles queriam, como dizemos hoje, ser "seus próprios donos". Mas isso significa viver uma mentira, porque na verdade não somos donos de nós mesmos, nossa alma não é nossa. Eles queriam um lugar no universo de onde pudessem dizer a Deus: "Este negócio é nosso e não seu." Mas não existe um canto assim. Eles queriam ser substantivos, mas eram, e serão eternamente, simples adjetivos. Não temos idéia em que ato, ou série de atos, o desejo contraditório, impossível, encontrou expressão. Por tudo o que sei, pode ter ligação com o ato de comer literalmente uma fruta, mas a questão não é importante. Este ato de obstinação por parte da criatura, que constitui uma absoluta falsidade em relação à sua posição de criatura, é o único pecado que pode ser concebido como a Queda.
A dificuldade com respeito ao primeiro pecado é que ele deve ser hediondo, caso contrário suas conseqüências não seriam tão terríveis, embora seja ao mesmo tempo algo que um ser, livre das tentações do homem decaído, possa ter possivelmente praticado. O desvio de Deus para o "eu" cumpre ambas as condições. É um pecado possível até mesmo ao homem paradisíaco, pois a simples existência de um "eu" - o mero fato de o chamarmos "mim" - inclui, desde o princípio, o perigo da auto-idolatria. Desde que eu sou eu, devo realizar um ato de auto-rendição, por menor ou mais fácil que seja, vivendo para Deus em lugar de para mim mesmo.
Este é o "ponto fraco" na própria natureza da criação, o risco que Deus aparentemente julga valer a pena aceitar. Mas o pecado foi hediondo porque o "eu" que o homem paradisíaco teve de render não continha uma resistência natural ao ato de render-se. Seus dados, por assim dizer, eram um organismo psicofísico inteiramente sujeito à vontade e uma vontade inteiramente disposta, embora não compelida, a voltar-se para Deus. A autoentrega que ele praticou antes da Queda não envolveu qualquer esforço, mas apenas a agradável vitória sobre uma auto-aderência infinitesimal que causou prazer ao ser vencida - no que vemos uma leve analogia na auto-entrega extasiada dos amantes de hoje. Ele não tinha, portanto, qualquer tentação (no sentido dado por nós) para escolher o "eu" - nenhuma paixão ou inclinação voltada obstinadamente para esse lado - nada além do simples fato de que o ego era ele mesmo.
Até esse momento o espírito humano tinha estado em pleno controle do organismo humano, e sem dúvida esperava que reteria esse controle quando deixou de obedecer a 40 Deus. Mas sua autoridade sobre o organismo não passava de uma autoridade delegada que perdeu quando deixou de ser o delegado de Deus. Pelo fato de ter-se afastado, na medida do possível, da fonte de seu ser, ele também rompeu sua ligação com a fonte de poder. Quando dizemos quanto às coisas criadas que A domina B, isto deve significar que Deus domina B através de A. Duvido que fosse intrinsecamente possível para Deus continuar a ter domínio sobre o organismo através do espírito humano quando este se rebela contra Ele. Pelo menos, não o fez. Passou a governar o organismo de maneira mais extrema, não mais pelas leis do espírito, mas pelas da natureza.4 Assim sendo, os órgãos, não mais governados pela vontade do homem, caíram sob o controle das leis bioquímicas comuns e sofreram as interações que essas leis provocaram na forma de dor, senilidade e morte.
Os desejos começaram a surgir na mente do homem, não de conformidade com a escolha feita pela sua razão, mas como os fatos bioquímicos e ambientais os provocavam.
A própria mente sujeitou- se às leis psicológicas da associação e outras que Deus tinha feito para governar a psicologia dos antropóides superiores. E a vontade, apanhada na maré da simples natureza, não teve outro recurso senão restringir alguns dos novos pensamentos e desejos pela força, e esses rebeldes inconformados se tomaram o subconsciente como o conhecemos hoje. O processo, segundo penso, não foi comparável à simples deterioração como pode ocorrer agora no indivíduo da espécie humana; mas tratou-se de uma perda de posição como espécie. O que o homem perdeu com a Queda foi sua natureza original específica. "Tu és pó e ao pó voltarás." O organismo total que se elevara até sua vida espiritual voltou à condição simplesmente natural de que, ao ser feito, tinha saído - assim como, muito antes na história da criação, Deus elevara a vida vegetal para tomar-se o veículo da animalidade, e o processo químico para tornar-se o veículo da vegetação, e o processo físico para tornar-se o veículo do químico. O espírito humano, de senhor da natureza humana, passou a ser um simples hóspede em sua própria casa, ou até mesmo um prisioneiro; a consciência racional transformou-se no que agora é - um facho de luz vacilante repousando em uma pequena parcela dos movimentos cerebrais. Mas esta limitação dos poderes do espírito foi um mal menor do que a corrupção do espírito em si. Ele se afastara de Deus e se tomara o seu próprio ídolo; e assim, embora pudesse ainda voltar a Deus,5 só podia fazê-lo mediante um grande esforço, e sua indignação era dirigida ao "eu".
Dessa forma o orgulho e a ambição, o desejo de ser belo a seus próprios olhos e de oprimir e humilhar todos os rivais, a inveja e a busca incessante de mais e mais segurança, eram agora as atitudes que tomava com maior facilidade. Ele não era apenas um rei fraco sobre a sua natureza, mas um mau rei: enviando ao organismo psicofísico desejos bem piores do que este os enviava a ele. Esta condição foi transmitida a todas as gerações posteriores pela hereditariedade, pois não se tratava simplesmente do que os biólogos 4 Este é um desenvolvimento do conceito de Hooker sobre a Lei. Desobedecer á sua própria lei (1.e., a lei que Deus faz para um ser como você) significa ver-se obedecendo a uma das leis inferiores de Deus: e.g., se ao andar num pavimento escorregadio, você negligenciar a lei da prudência, irá encontrar-se repentinamente obedecendo à lei da gravidade.
5 0s teólogos irão notar que não pretendo fazer aqui qualquer contribuição á controvérsia pelágioagostiniana.
Quero indicar unicamente que tal volta a Deus não era nem é uma impossibilidade. Onde fica a iniciativa de tal retomo é uma questão sobre a qual não me atrevo a dizer nada. 41 chamam de uma variação adquirida; mas da emergência de um novo tipo de homem - uma nova espécie, jamais feita por Deus, tinha passado a existir mediante o pecado. A mudança pela qual o homem passara não era paralela ao desenvolvimento de um novo órgão ou um novo hábito; tratava-se, entretanto, de uma alteração radical de sua constituição, um distúrbio da relação entre as suas partes componentes, e uma perversão interna de uma delas.
Deus poderia ter suspenso este processo através de um milagre: mas isto - falando por metáfora algo irreverente - seria declinar o problema que Deus, Ele mesmo, tinha estabelecido ao criar o total de um mundo contendo agentes livres, apesar de, e por meio de, sua rebelião contra Ele. O símbolo de um drama, uma sinfonia, ou uma dança, é útil aqui para corrigir um certo absurdo que pode surgir se falarmos demasiado a respeito de Deus planejar e criar o processo do mundo para o bem e de esse bem ser frustrado pelo livre-arbítrio das criaturas.
Isto pode levantar a idéia ridícula de que a Queda tomou Deus de surpresa e atrapalhou os seus planos, ou então - mais ridículo ainda - que Deus planejou tudo para condições que, Ele bem sabia, jamais iriam ser cumpridas. De fato, como é natural, Deus viu a crucifixão no ato de criar a primeira nebulosa. O mundo é uma dança em que o bem, procedente de Deus, é perturbado pelo mal que sobe das criaturas, e o conflito resultante é resolvido pela suposição do próprio Deus da natureza sofredora que o mal produz. A doutrina da Queda voluntária afirma que o mal que produz assim o combustível ou a matéria-prima para o segundo e mais complexo tipo de bem não é contribuição de Deus mas do homem. Isto não quer dizer que se o homem tivesse permanecido inocente, Deus não poderia então ter inventado um todo sinfônico igualmente esplêndido - supondo que insistamos em fazer perguntas desse tipo.
Mas deve ser sempre lembrado que quando falamos do que poderia ter acontecido, de contingências fora de toda realidade, não sabemos na verdade do que estamos falando. Não existem tempos nem lugares fora do universo existente em que tudo isto "poderia acontecer" ou "poderia ter acontecido". Penso que a maneira mais significativa de afirmar a verdadeira liberdade do homem é dizer que se existirem outras espécies racionais além dele, em alguma outra parte do universo atual, então não é necessário supor que elas também tenham decaído.
Nossa condição presente é então explicada pelo fato de que somos membros de uma espécie estragada. Não quero dizer que nossos sofrimentos sejam uma punição por ser aquilo que agora não mais podemos deixar de ser, nem que sejamos moralmente responsáveis pela rebelião de um ancestral remoto. Se, todavia, digo que nossa condição presente é de pecado original, e não simplesmente de infortúnio original, isto se deve ao fato de nossa experiência religiosa real não permitir que a consideremos de qualquer outro modo. Em teoria, suponho que poderíamos dizer: "Sim, nós nos comportamos como vermes, mas isso porque somos vermes. E, afinal de contas, isso não é culpa nossa." Mas o fato de sermos vermes, longe de ser sentido como uma desculpa, é uma vergonha e um sofrimento para nós maior do que qualquer dos atos que ele nos leva a cometer. A situação não é assim tão difícil de entender como alguns pensam. Ela surge entre os seres humanos toda vez que um menino realmente mal educado é introduzido no seio de uma família decente. Eles procuram lembrar-se de que "não é culpa dele" ser um valentão, um covarde, um mexeriqueiro e um mentiroso. Mas, de qualquer jeito, como quer que o tenha adquirido, seu caráter é detestável. Eles não só o odeiam, como devem odiá-lo. Não podem amar o menino pelo que é, podem apenas tentar transformá-lo naquilo que não é. Nesse meio 42 tempo, embora o menino não tenha tido sorte em ser criado desse modo, você não pode com justiça chamar o seu caráter de uma "infelicidade" como se ele fosse uma coisa e o seu caráter outra. É ele - ele mesmo - que aborrece, age covardemente e gosta disso. E se começar a emendar-se irá inevitavelmente sentir vergonha e culpa daquilo que está começando a deixar de ser.
Com isto eu disse tudo que pode ser dito no único nível em que sinto que posso tratar do assunto da Queda. Aviso porém mais uma vez meus leitores que este nível é raso. Nada dissemos das árvores da vida e do conhecimento que sem dúvida ocultam algum grande mistério: e nada dissemos da afirmação paulina de que "em Adão todos morrem, assim também todos serão vivificados em Cristo".6 É esta passagem que serve de base à doutrina patrística de nossa presença física nos lombos de Adão e à doutrina de Anselmo de nossa inclusão, por ficção Legal, no Cristo sofredor. Essas teorias podem ter sido adequadas em sua época, mas nada me acrescentam, e não vou inventar outras. Os cientistas nos afirmaram recentemente que não temos direito de esperar que o universo real possa ser retratado, e se concebermos imagens mentais para ilustrar a física quântica estaremos então nos distanciando da realidade e não nos aproximando dela.7
Temos ainda menos direito de exigir que as realidades espirituais mais elevadas possam ser retratadas, ou sequer explicadas em termos de nossos pensamentos abstratos. Observo que a dificuldade da fórmula paulina está na partícula "em", e que esta é usada com freqüência no Novo Testamento em sentidos que não podemos entender completamente. O fato de podermos morrer "em" Adão e viver "em" Cristo parece implicar que o homem, como realmente é, difere muito daquele apresentado por nossas categorias de pensamento e nossas três imaginações dimensionais; que a separação - modificada apenas por relações causais - que discernimos entre os indivíduos, é equilibrada na realidade absoluta, por uma espécie de "comunicação" da qual não temos qualquer idéia.
É possível que os atos e sofrimentos de grandes indivíduos-protótipos como Adão e Cristo sejam nossos, não mediante ficção legal, metáfora ou causalidade, mas de algum modo muito mais profundo. Não existe questão, naturalmente, de indivíduos se fundindo numa espécie de continuidade espiritual como acreditam os sistemas panteístas; isso fica excluído por todo o teor da nossa fé. Pode, entretanto, haver uma tensão entre a individualidade e algum outro princípio. Cremos que o Espírito Santo possa estar realmente presente e operando no espírito humano, mas nós não aceitamos isto, como os panteístas, no sentido de que somos "partes" ou "modificações" ou "manifestações" de Deus.
Podemos ter de supor, a longo prazo, que algo deste tipo seja verdade, em grau adequado, até mesmo com respeito aos espíritos criados. Isto é, cada um, embora distinto, está realmente presente em todos, assim como talvez tenhamos de admitir "ação à distância" no nosso conceito de matéria. Todos terão notado como o velho Testamento parece às vezes ignorar nosso conceito do indivíduo. Quando Deus promete a Jacó que "irá para o Egito com ele e certamente o fará sair de lá novamente",8 isto é cumprido seja pelo sepultamento do corpo de Jacó na Palestina ou pelo êxodo dos descendentes de Jacó do Egito. É perfeitamente justo associar esta noção com a estrutura social das primeiras comunidades, nas quais o indivíduo é constantemente esquecido a favor da tribo ou família.
6 I Co15:22
7 Sir James Jeans, The Mysterious Universe. cap. 5
8 Gn 46:4
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Devemos, porém, expressar esta ligação mediante duas proposições de igual importância: primeiro, os antigos ficaram cegos a algumas verdades que percebemos, devido à sua experiência social; e, segundo, esta os tomou sensíveis a algumas verdades que não percebemos. A ficção legal, a adoção e a transferência ou imputação de mérito e culpa, jamais poderiam ter desempenhado a parte que desempenharam na teologia se tivessem sempre sido consideradas como sendo tão artificiais como julgamos que sejam agora.
Achei por bem permitir este vislumbre de algo que é para mim uma cortina impenetrável. Mas, como já disse, não faz parte de meu argumento presente. Seria claramente inútil tentar resolver o problema do sofrimento produzindo um outro problema. A tese deste capítulo é simplesmente de que o homem, como espécie, estragou-se a si mesmo, e que o bem, para nós, em nossa condição presente, deve significar primariamente um bem terapêutico ou corretivo. Qual a parte desempenhada realmente pelo sofrimento em tal terapia ou correção será agora objeto de nosso estudo.
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