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quarta-feira, maio 10, 2006

Capítulo 7

O Sofrimento Humano (continuação)

Todas as coisas que são como deveriam ser conformam-se a esta segunda lei eterna;e mesmo aquelas coisas não conformadas a esta lei eterna, todavia, de algum modo, são ordenadas pela primeira lei eterna.
HOOKER. Laws of Eccles. Pol. 1, 3, 1.
Vou apresentar neste capítulo seis proposições necessárias para completar nosso relato do sofrimento humano as quais não são interdependentes e devem, portanto, ser dadas em unia escala arbitraria.
l. Existe no cristianismo um paradoxo no que se refere à tribulação. Bem-aventurados são os pobres, mas através do "juízo" (i.e., da justiça social) e esmolas devemos remover a pobreza sempre que podemos evitar a perseguição fugindo de cidade em cidade, e é permitido orar para que sejamos poupados, como fez nosso Senhor no Getsêmani.
Mas, se o sofrimento é bom não deveria ele ser procurado em vez de evitado? Respondo que ele não é bom de si mesmo. O que é positivo para o sofredor em qualquer experiência penosa é a sua submissão à vontade de Deus e, para os espectadores, a compaixão despertada e os atos de bondade a que esta os leva.
No universo decaído e parcialmente remido podemos distinguir: (1) o simples bem procedente de Deus, (2) o simples mal produzido pelas criaturas rebeldes, e (3) a exploração desse mal por parte de Deus para atender ao seu propósito redentor, que produz (4) o bem complexo para o qual contribuem o sofrimento aceito e o pecado de que nos arrependemos. O fato de Deus poder extrair o bem complexo do simples mal não desculpa - embora pela misericórdia ele possa salvar - os que praticam o simples mal. Esta distinção é essencial, As ofensas devem sobrevir, mas ai daqueles que as praticam; os pecados realmente fazem abundar a graça, mas não devemos fazer disso uma justificativa para continuar pecando. A crucificação é em si mesma o melhor, assim como o pior, de todos os eventos históricos, mas o papei de )udas continua simplesmente sendo mau. Podemos aplicar isto primeiro ao problema do sofrimento alheio. O homem misericordioso visa o bem de seu próximo assim como a "vontade de Deus", colaborando conscientemente com o "bem simples". O homem cruel oprime seu semelhante e o mesmo acontece com o simples mal. Mas ao praticar esse mal, ele é usado por Deus, sem seu conhecimento ou permissão, para produzir o bem complexo - e assim o primeiro homem serve a Deus como filho e o segundo como instrumento.
Você irá certamente realizar o propósito de Deus, de qualquer forma que possa agir, mas fará diferença em sua vida se servi-lO como Judas ou como João. O sistema inteiro, por assim dizer, é calculado em relação ao conflito entre homens bons e maus, e os frutos positivos da força, paciência, piedade e perdão para a crueldade do homem cruel, pressupõem que o homem bom geralmente continua a buscar o simples bem. Digo "geralmente" porque o homem tem algumas vezes o direito de ferir (ou mesmo, em minha opinião, de matar) seu semelhante, mas apenas quando a necessidade é urgente e o bem a 55
ser alcançado óbvio, e no geral (embora nem sempre) quando o que inflige a dor possui autoridade definida para fazê-lo - a autoridade paterna derivada da natureza, a do magistrado ou soldado derivada da sociedade civil, ou a do cirurgião, procedente na maioria das vezes do próprio paciente.
Transformar isto numa provisão geral para a humanidade aflita porque "a aflição é boa para ela" (como o lunático Tamberlaine de Marlowe se gabava de ser o "flagelo de Deus") não seria quebrar o esquema divino mas apresentar-se como voluntário para o posto de Satanás dentro desse esquema. Se você fizer o trabalho dele deve ficar preparado para receber o salário pago por ele.
O problema sobre como evitar o nosso próprio sofrimento admite uma solução semelhante. Alguns ascéticos fizeram uso da autoflagelação. Como leigo, não ofereço opinião sobre a prudência de tal regime; mas insisto em que, quaisquer que sejam os seus méritos, a autoflagelação difere muito da tribulação enviada por Deus. Todo mundo sabe que jejuar é uma experiência diferente daquela de não jantar seja por acidente ou pobreza.
O jejum coloca em campos opostos a vontade e o apetite - a recompensa sendo o domínio próprio e o perigo o orgulho: a fome involuntária sujeita ao mesmo tempo os apetites e a vontade à vontade de Deus, fornecendo uma ocasião para nos submetermos e nos expondo ao perigo da rebelião. Mas o efeito redentor do sofrimento jaz principalmente em sua tendência a reduzir a vontade rebelde. As práticas ascéticas, que por si mesmas fortalecem a vontade, só são úteis pelo fato de capacitarem a vontade a colocar sua casa (as paixões) em ordem, como um preparo para oferecer o homem inteiro a Deus. Elas são necessárias como um meio; como um fim seriam abomináveis, pois ao substituir o apetite pela vontade e interrompendo-se nesse ponto, estariam simplesmente trocando o ser animal pelo diabólico.
Foi dito portanto com verdade que "somente Deus pode mortificar". A tribulação faz o seu trabalho num mundo onde os seres humanos estão naturalmente buscando, por meios comuns, evitar o seu próprio mal natural e alcançar o seu bem natural, pressupondo também tal mundo. A fim de submetermos a vontade a Deus, devemos ter uma vontade e esta precisa de objetos.
A renúncia cristã não significa uma "apatia" estóica, mas disposição para preferir Deus a alvos inferiores embora legais.
Assim sendo, o Homem Perfeito levou ao Getsêmani uma vontade, e uma vontade forte, de escapar ao sofrimento e à morte se tal fuga fosse compatível com a vontade do Pai, combinada com uma disposição perfeita para obedecer caso não fosse. Alguns dos santos recomendaram uma "renúncia total" no próprio limiar de nosso discipulado. Penso, porém, que isto só pode significar uma disposição total para toda renúncia particular 1 que possa ser exigida, pois seria impossível viver de momento a momento nada desejando além da submissão a Deus como tal. Qual seria então o material da submissão? Pareceria contraditório dizer: "O que quero é sujeitar o que quero à vontade de Deus", pois o segundo o que não tem conteúdo. Sem dúvida todos nós temos muito cuidado em evitar o nosso próprio sofrimento: mas uma intenção devidamente subordinada no sentido de evitá-lo, fazendo uso de meios legais, está de acordo com a "natureza" - isto é, com todo o sistema de serviço da vida da criatura para a qual o processo redentor da, tribulação é calculado.
1 Cf. Brother Lawrence, Practice of tbe Presence of God, Palestra IV, Novembro 25, 1667. A única
"renúncia sincera" que existe "de tudo a que somos sensíveis não nos leva a Deus".
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Seria absolutamente falso; portanto, supor que o ponto de vista cristão do sofrimento é incompatível com a ênfase mais forte sobre o nosso dever de tornar o mundo, mesmo de modo temporal, "melhor" do que o encontramos. Na descrição parabólica mais ampla que Ele nos fez a respeito do Juízo, Nosso Senhor parece reduzir toda virtude a uma bondade ativa: e embora fosse um erro aceitar esse quadro isolando-o do Evangelho como um todo, ele basta para colocar além de qualquer dúvida os princípios básicos da ética social do cristianismo.
2. Se a tribulação é um elemento necessário na redenção, de- vemos antecipar que jamais cessará até que Deus considere o mundo como sendo passível ou não de remissão. O cristão não pode, portanto, acreditar naqueles que afirmam que apenas se alguma reforma em nosso sistema econômico, político ou de saúde fosse feita, teríamos um céu na terra.
Isto poderia parecer produzir um efeito desanimador sobre o obreiro social, mas na prática o resultado não é esse. Pelo contrário, um forte senso de nossas misérias comuns, simplesmente como seres humanos, é pelo menos tão bom como um estímulo para remover todas as misérias possíveis, como qualquer das loucas esperanças que tentam os homens a
buscarem sua realização transgredindo a lei moral e mostram não passar de pó e cinzas depois de alcançadas.
Se aplicada à vida individual, a doutrina de que um céu imaginário na terra é necessário às vigorosas tentativas de remover o mal presente, imediatamente revelaria ser absurda. Os homens famintos buscam alimento e os doentes cura, não obstante saibam que depois da refeição ou da cura os altos e baixos da vida ainda continuam à sua espera. Não estou naturalmente discutindo se modificações drásticas em nosso sistema social são ou não desejáveis; mas apenas lembrando o leitor de que um determinado remédio não deve ser erradamente aceito como o elixir da vida.
3. Desde que os assuntos políticos cruzaram aqui nosso caminho, devo deixar claro que a doutrina cristã de auto-rendição e obediência é puramente teológica, e de forma alguma política. Quanto a formas de governo,
autoridade e obediência civis, nada tenho a dizer. A espécie e grau de obediência que uma criatura deve ao seu Criador é uma coisa singular em vista de a relação entre criatura e Criador ser única: nenhuma inferência pode ser extraída dela em associação a qualquer proposição política qualquer que seja ela.
4. A doutrina cristã do sofrimento explica, creio eu, um fato muito curioso sobre o mundo em que vivemos. A felicidade e segu- rança estáveis que todos almejamos nos são negadas por Deus pela própria natureza do mundo: mas alegria, prazer e diversão, Ele espalhou por toda parte. Jamais estamos seguros, mas temos muita alegria e algum êxtase. Não é difícil saber por quê. A segurança que desejamos nos ensinaria a descansar o coração no cenário de, uma sinfonia, um encontro alegre entre amigos, um banho ou um jogo de futebol, não têm essa tendência. Nosso Pai nos refresca na jornada fornecendo algumas estalagens agradáveis, mas não nos encoraja a aceitá-las como se fossem o nosso lar.
5. Não devemos jamais tomar o problema do sofrimento pior do que já é, falando vagamente de "uma soma inconcebível de miséria humana". Suponhamos que eu tenha uma dor de dentes de intensidade x: e suponhamos que você, sentado ao meu lado, comece também a ter uma dor de dentes de intensidade x. Você pode, se quiser, dizer que o total de dor no recinto é agora 2x. Mas deve lembrar-se de que ninguém está sofrendo 2x: pode 57
procurar em todo tempo e espaço e não descobrirá essa dor composta na consciência de ninguém. Não existe algo como uma soma de sofrimento, pois ninguém a sofre. Quando alcançamos o máximo que uma pessoa pode sofrer, teremos, sem dúvida, atingido algo bastante horrível, mas alcançamos todo o sofrimento que jamais .pode haver no universo. O acréscimo de um milhão de indivíduos igualmente sofredores não irá acrescentar mais nada a essa dor.
6. De todos os males, a dor é apenas um mal esterilizado e desinfetado. O mal intelectual, ou erro, pode repetir-se porque a causa do primeiro erro (tal como a fadiga ou letra ininteligível) continua a operar: mas em separado disso, o erro por si mesmo gera o erro - se o primeiro passo num argumento estiver errado, tudo que se seguir estará também errado. O pecado pode repetir-se porque a tentação original continua; mas, isoladamente, o pecado por sua própria natureza gera o pecado, fortalecendo o mau hábito e enfraquecendo a consciência. A dor então, como os outros males, pode naturalmente repetir-se pelo fato de a causa da primeira dor (uma moléstia ou um inimigo) estar ainda operando: mas a dor não tem a tendência, por si só, de proliferar. Quando ela acaba, acaba mesmo, e a seqüência natural é alegria. Esta distinção também funciona de modo inverso. Depois de cometido um erro, você precisa não só remover as causas (a fadiga ou a escrita difícil de compreender), mas também corrigir o próprio erro: depois de um pecado você não deve apenas, se possível, remover a tentação, mas deve também retroceder e arrepender-se do pecado em si.
Em cada caso, uma "eliminação" é exigida. A dor não requer isso. Você pode ter de curar a moléstia que a provocou, mas a dor, uma vez vencida, é estéril - enquanto o erro nãocorrigido e o pecado não-arrependido, por si mesmos, são uma fonte de novo erro e novo pecado fluindo até o fim dos tempos.
Quando eu erro, portanto, o meu erro afeta todos os que crêem em mim. Quando peco publicamente, cada espectador tem de aceitá-lo, partilhando assim a minha culpa, ou condená-lo, pondo em risco iminente sua piedade e humildade. Mas o sofrimento não produz naturalmente nos espectadores (a não ser que sejam extraordinariamente depravados) nenhum efeito negativo, mas sim positivo - a piedade. Então esse mal usado principalmente por Deus a fim de produzir o "bem complexo" acha-se notavelmente descontaminado, ou privado dessa tendência prolífica que é a pior de todas as características do mal de maneira generalizada.